SOBRE A CARTA
Alexandre Dias 20.03.2012
No post anterior vimos a publicação de uma carta inédita que apresenta diversas informações novas sobre Ernesto Nazareth.
Alguns pontos interessantes:
1) Trata-se do primeiro documento que relata um encontro entre Ernesto Nazareth e Machado de Assis. Ambos viveram na mesma cidade e no mesmo período, ambos vieram de origem humilde para cultivar o mais alto grau artístico, porém não eram conhecidas sobreposições diretas entre ambos. Há inclusive trabalhos acadêmicos exemplares (vide José Miguel Wisnik e Cacá Machado) que traçam uma profunda análise entre a personalidade do pianista Pestana, personagem do conto Um homem célebre, e Ernesto Nazareth. Os acontecimentos relatados na carta podem ser até mesmo anteriores ao referido conto.
É interessante que Machado pedisse a Ernesto para "tocar algo de Schumann", compositor pertencente ao panteão da música erudita européia. É possível que Nazareth, diante desse pedido, tocasse alguma das Peças Fantásticas Op.12, ou mesmo alguma das Cenas Infantis Op.15, ambas presentes em seu espólio.
2) Vemos o marcante desabafo de Ernesto na seguinte passagem: "Tanto era excelente sua execução, que (...) o Maestro Arthur Napoleão perguntava ao Nazareth: - Ó Nazareth, por que não escreves tuas composições como as executas? Ao que respondia o sempre tristonho e tímido artista: - Maestro, para não morrer de fome. Imagine o Senhor: - se escrevendo o mais fácil possível para a mão esquerda ainda acham minha música difícil, se escrever como toco, ninguém vai comprar minhas composições.". Isto atiça nossa imaginação sobre como Nazareth tocava suas peças no final do século XIX. Quão diferente era a mão esquerda? Tocaria com maior invenção rítmica? Maior riqueza harmônica? Maior uso de contracantos? As gravações que o próprio Nazareth fez em 1912 e 1930 talvez nos forneçam uma amostra distante do que seriam estas execuções de décadas antes.
3) Menciona-se a existência de "cinco ou seis canções" de Nazareth dedicadas à família de Célio Monteiro, e cujos originais desapareceram. Que composições seriam essas? Nazareth possui algumas poucas canções, algumas inclusive com letra própria, mas seriam as mesmas mencionadas na carta? É possível que sejam composições únicas, e que este "livro encadernado em tafetá vermelho" ainda seja descoberto algum dia em um sebo ou venda de acervo familiar, trazendo à luz algumas composições perdidas de Ernesto.
4) Quem seria a avó de Célio Monteiro, referida por ele como "exímia pianista, uma das primeiras damas brasileiras a poder ostentar o título de Maestrina, e que estudou no Rio e na Europa."? Infelizmente não sabemos no momento. Porém é interessante o registro de que essa senhora tocava a quatro mãos com a mãe de Ernesto Nazareth, D. Carolina Augusta da Cunha Nazareth, tida como exímia pianista. Também é interessante notarmos que a desconhecida senhora estimulava que D. Carolina ensinasse piano ao menino Ernesto, embora sempre recebesse a resposta de que "o pai se opunha a que ele fosse músico, ou mesmo 'perdesse tempo' em estudar piano".
5) Vemos a informação de que o pianista portugês Vianna da Motta, aluno de Liszt, ouviu Ernesto Nazareth tocar. Trata-se de mais uma músico proeminente estrangeiro que o ouviu, juntamente com Darius Milhaud, Arthur Rubinstein, Ernest Schelling.
6) Na carta vemos talvez pela primeira vez listados alguns dos compositores que Nazareth trabalhava com seus alunos, nas aulas de piano. Bach, Mozart, Haydn, Beethoven, Chopin, Schumann e Grieg. Todos compositores europeus, necessários para a formação de um pianista erudito. É interessante notar que eu seu cartão de visitas, constava "Ernesto Nazareth - Professor de piano", profissão esta que representava um dos principais sustentos de Nazareth. No entanto, ainda se conhece pouco desta faceta.
7) Temos um vislumbre sobre o repertório que Nazareth tocava em saraus familiares: "Schubert, Brahms, Mozart e até um concerto de Gottschalk, que o reduziu para piano solista e acompanhamento".
8) Vemos uma utilização da palavra pianeiro como pejorativa, em oposição a pianista. Embora hoje o termo pianeiro já não tenha mais conotação pejorativa nos dias de hoje (ver LP 'Os Pianeiros', de 1984), na época de Nazareth este termo era utilizado frequentemente para se referir ao músico que tocava de ouvido, sem educação musical formal. Nazareth também não teve uma educação formal, porém lutou para sempre ser reconhecido como um músico/compositor de concerto, procurando tomar cuidado para não compor apenas peças "do momento" , mas sim obras duradouras. De qualquer forma, o adjetivo pianeiro se aplicado de maneira contextualizada hoje, pode se referir aos a pianistas que possuem toda a ginga carioca somada frequentemente a um virtuosismo técnico, e Nazareth estaria incluído.
Alexandre Dias
COMENTÁRIOS
Rodrigo Alzuguir - 13.02.2013
Muito bom!
Muito bom conhecer essa carta do Célio e seus comentários sobre ela! Parabéns, Alexandre!