COMPOSIÇÃO
1920
1ª PUBLICAÇÃO
2008
Noturno, peça de concerto composta em 1920, dedicada “aos prezados amigos Dr. Numa e Effe Corrêa de Carvalho” e publicada postumamente em 2008 pelo portal Musica Brasilis.
O Noturno (subtitulado como Op.1 em um dos manuscritos autógrafos conhecidos) pertence ao grupo de peças de concerto de Nazareth, sendo uma das facetas menos exploradas de sua obra. Outros exemplos são: Fantástica, O nome dela, Marcha fúnebre, Mágoas, Polonesa, Improviso, e Capricho. Até 2012, foi gravado duas vezes.
Existem pelo menos quatro manuscritos autógrafos desta peça. No frontispício de um deles, finalizado com esmero, consta uma rara informação, o local onde foi composto e a data exata: “Ipanema, 24 de Novembro de 1920”.
Um noturno é uma composição inspirada pela noite, ou que a evoca. Em geral consiste em uma melodia cantabile e lenta sobre acompanhamentos arpejados, e com forma A-B-A, sendo a parte central por vezes mais agitada. Os primeiros noturnos a serem escritos, como forma consolidada do período romântico, são do compositor irlandês John Field. Seus 18 noturnos, vieram a inspirar Chopin a elevar esta forma musical a um novo patamar artístico, com seus 21 noturnos escritos entre 1827 e 1846.
À maneira de Chopin, Nazareth também expandiu e popularizou uma forma musical em que ele não foi pioneiro: o tango brasileiro, elaborando-o no piano e gerando uma linguagem musical muito particular, que viria a influenciar diversas gerações de músicos. Este é um dos motivos pelos quais Nazareth é chamado de “o Chopin Brasileiro”.
O noturno depois de Chopin continuou seu desenvolvimento em diversos compositores, como Glinka, Mendelssohn, Liszt, Schumann, Bizet, Tchaikovsky, Grieg, Rimsky-Korsakov, Fauré, Debussy, Shostakovich, Barber e Britten. No Brasil, encontraremos noturnos na obra de praticamente todos os grandes compositores brasileiros, como Carlos Gomes, Brasilio Itiberê da Cunha, Henrique Oswald (a quem Nazareth dedicou seu Batuque), Leopoldo Miguéz, Alberto Nepomuceno, Heitor Villa-Lobos (Noturno ‘Hommage a Chopin’), Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Radamés Gnattali, Almeida Prado, Amaral Vieira, Camargo Guarnieri, Guerra-Peixe e Cláudio Santoro (para mais composições desse gênero, ver CD Noturnos Brasileiros, tocado pela pianista Anna Cândida, lançado pela Funarte).
Chiquinha Gonzaga e Marcello Tupynambá também compuseram um noturno cada um, sendo o de Chiquinha chamado Meditação, e o de Tupynambá uma peça para canto e piano, com letra de Onestaldo Penafort.
Algo que é objeto de grande curiosidade é o fato de esta ser a única peça em que Nazareth incluiu um número de opus: Op. 1. Por quê? Além disso, à época em que compôs seu noturno, Nazareth já tinha composto mais de 120 músicas. Cleida Lourenço, em sua dissertação de mestrado Ernesto Nazareth em suas relações com seus contemporâneos nacionalistas (UFRJ, 2005), reflete: “O fato de ter classificado o seu Noturno de “opus 1”, após a numeração de sua produção ter ultrapassado a centena, diz muito a respeito de quanto Nazareth considerava esta obra como pertencente a um outro universo, eventualmente mais erudito. Via a necessidade de separar a produção destinada aos salões, que transitava entre os gêneros da moda, da criação vinculada ao campo da música de concerto. Sua atitude dá muito que pensar. Será que valorizava bem mais a qualidade artística dessa música, relegando a um segundo plano os tangos, polcas e valsas que o tornaram tão conhecido? Teria aceitado os valores das classes dominantes, alimentando ainda a idéia de que os parâmetros da música de concerto eram socialmente mais elevados, ao contrário daqueles que costumava compor? Ou estava apenas seguindo um modelo de diferenciação que já existia, sem desafiar padrões nem questioná-los?”.
Essa dialética entre o “popular” e o “erudito” é um dos mistérios da obra de Nazareth. É sabido que ele queria ser reconhecido como um compositor de concerto, embora o forte de sua produção estivesse nos tangos, valsas e polcas que revolucionaram a música brasileira. Porém estas mesmas músicas “populares” de Nazareth, têm sido cada vez mais interpretadas como peças de concerto mundo afora. O próprio compositor as interpretou nos recitais que deu no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Nazareth tem o mérito de compor autênticas peças de concerto no idiomatismo romântico, demonstrando grande conhecimento nos gêneros específicos, como a polonaise, a valsa brilhante, o capricho, e o noturno. Essa opinião é expressa por outros acadêmicos: “Os títulos [deste reduzido grupo de peças de concerto] se reportam ao formalismo do repertório da música tradicional de concerto, não a peças de salão. E se não fosse conhecida a autoria, a simples audição ou até mesmo o estudo não permitiria defini-la com segurança. Poderia tratar-se de algum compositor europeu. E se de brasileiro, a indicação de um Miguez, Oswald, Levy ou Nepomuceno não causaria a menor estranheza.” (Ernesto Nazareth em suas relações com seus contemporâneos nacionalistas, dissertação de mestrado de Cleida Lourenço, UFRJ, 2005).
“(…) Se deixarmos de lado a busca de elementos de brasilidade, veremos que algumas destas peças revelam muito bom gosto e são capazes de nos causar intenso prazer estético. Cite-se como exemplo o Noturno, registrado aliás como “opus 1 (…).” (Ernesto Nazareth e o Tango Brasileiro, dissertação de mestrado de Marcelo Verzoni, UFRJ, 1996)
A história de Nazareth é diferente da do pianista Pestana, no conto Um homem célebre, grande compositor de polcas e maxixes no Rio da Belle Époque, mas que na verdade se atormentava buscando compor como Mozart, Beethoven ou Schumann: “Desde logo, para comemorar [seu casamento], teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos [dos compositores românticos]. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos. - Acaba, disse Maria; não é Chopin? Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão”. (trecho do conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis, 1888)
Como afirma José Miguel Wisnik, “Nazareth é o primeiro Pestana que deu certo” (Machado Maxixe in Sem Receita, Publifolha, 2004). O Noturno de Nazareth foi escrito no idioma dos noturnos de Chopin, porém não há nenhuma melodia plagiada. Vemos inclusive a utilização de um “coral” na terceira parte, à maneira de muitas obras de Chopin. O coral consiste em uma seção em que a melodia cantabile dá lugar a acordes em blocos (como vozes de um coral) Para uma análise mais aprofundada em seções-coral de Chopin, ver: An analysis of the chorales in three Chopin nocturnes: Op. 32, No.2; Op. 55, No.1; and the nocturne in C# minor (without opus number) (Heyer, 2008).
Também se nota que Nazareth extraiu alguns termos de expressão dos noturnos de Chopin, como ‘religioso’ e “lânguido”, ambos presentes no noturno Op.15 No.3 em sol menor. Este noturno fazia parte da coleção particular de Nazareth. Além disso, no final da primeira parte vemos as oitavas descendentes em teclas pretas, à maneira do final do estudo Op.10 No.5.
Como destacado por Cleida Lourenço, é interessante notar as tonalidades escolhidas por Nazareth para este noturno, sol bemol maior na primeira parte, ré bemol maior na segunda e si maior na terceira, remetem muito mais à linguagem composicional da música de concerto que à criação destinada ao repertório de salão.
Apesar do lugar importante que esta peça ocupa na obra de Nazareth, o autor nunca chegou a tocá-la em público, embora tenha tido várias oportunidades para fazê-lo, como por exemplo nos nove recitais que fez em sua turnê em São Paulo em 1926.