O UNIVERSO MUSICAL NAZARETHIANO

Alexandre Dias 24.03.2015

Na última sexta-feira, dia 20 de março de 2015, Ernesto Nazareth teria completado 152 anos. Para comemorar esta data, vamos fazer um apanhado de alguns compositores que fizeram parte dos primeiros anos da formação de Nazareth, em uma tentativa de reconstruir seu universo musical.

É ainda difícil saber quais autores foram mais influentes para que Nazareth criasse e consolidasse seu estilo, considerando que tinha em seu repertório diversas peças do repertório de salão europeu, e estava sempre a par das novidades brasileiras, especialmente depois que passou a trabalhar como demonstrador de partituras em casas de música. Portanto, neste texto apresentaremos uma primeira tentativa de reunir os compositores que estiveram mais próximos do Nazareth, ou que faziam parte de seu repertório com mais frequência.

(Este texto foi baseado no ensaio publicado na Enciclopédia Músicos do Brasil em 2008 sobre as influências pianísticas na obra de Nazareth, com acréscimo de novas informações recém-descobertas).

O mapa mental abaixo ilustra as ligações que serão explicadas ao longo do texto (clique na imagem para visualizá-lo maior).

 

Henrique Alves de Mesquita (1830-1906)

Mesquita foi o primeiro brasileiro a ser enviado à Europa, para estudar no prestigioso Conservatório de Paris. De volta ao Brasil, compôs óperas, missas e Te Deums paralelamente a polcas-cateretês, lundus e tangos brasileiros, que se tornaram imensamente populares na época.

Seu “Tango” da mágica “Ali-Babá” (1872) é reconhecido como o primeiro tango brasileiro da história, gênero este que viria a ser consolidado por Nazareth décadas mais tarde.

A influência de Henrique Alves de Mesquita sobre a obra de Nazareth ainda está para ser estudada, e pode ter sido considerável.

Por exemplo, o famoso “Batuque” de Mesquita, publicado em 1894 com o subtítulo “tango característico”, parece ter servido de inspiração para a música de mesmo título e mesmo subtítulo que Nazareth começaria a compor em 1901, e que se tornaria uma de suas obras-primas.

 

 

Cabeçalhos do Batuque de Henrique Alves de Mesquita e do Batuque de Ernesto Nazareth

Anos depois, Nazareth faria uma homenagem “à memória do grande Maestro Henrique Alves de Mesquita”, com o também tango característico “Mesquitinha” (1914), registrando sua admiração. O nome no diminutivo pode indicar até mesmo que ambos foram amigos próximos, como sugere o biógrafo Luiz Antonio de Almeida.

Outro fato curioso é que dois dos professores de Nazareth (Eduardo Madeira e Lucien Lambert) publicaram arranjos para piano solo de operetas do Mesquita, indicando que eles não só conheciam sua obra, como também a trabalhavam. Pode ter sido através de seus mestres que Nazareth entrou em contato pela primeira vez com a obra de Mesquita. No espólio de Nazareth, consta a toccata “Vaidosa”, de Mesquita.

(clique aqui para acessar o Acervo Digital Henrique Alves de Mesquita)

 

Eduardo Rodolpho de Andrade Madeira (1853 ou 1854 - 1883)

Pouco se sabe sobre este pianista e compositor que deu aulas para Nazareth durante um ano e meio por volta de 1874, quanto este tinha cerca de 11 anos. O biógrafo Luiz Antonio de Almeida afirma que Eduardo Madeira era amigo da família do lado materno de Nazareth e que era um hábil pianista, além de praticante do Banco do Brasil (depois 2º escriturário). Consta que ele teria dito a Nazareth em certo momento: “Agora, você já pode seguir sozinho, pois já sabe mais do que eu!...”. A literatura não fornece detalhes sobre este período, como por exemplo o tipo de repertório trabalhado nas aulas, mas é possível que tenham abordado tanto peças europeias (pois ambos viriam a se apresentar juntos tocando transcrições de ópera), como polcas brasileiras (gênero em que Madeira compunha, tendo pelo menos uma peça publicada).

Recentemente veio à tona uma matéria de jornal (Correio Mercantil, 17 de outubro de 1865) que noticia o primeiro sarau artístico da sociedade Arcadia Fluminense, no dia 14 de outubro de 1865. Neste evento que durou cerca de 6 horas, com participação de diversos artistas, “o menino Eduardo Madeira, de 12 anos de idade, tocou ao piano um galope da ópera Kettly [de Jules Denefve]”. No mesmo evento, Machado de Assis recitou sua poesia “No espaço”. Com isso pôde-se pela primeira vez estimar a data de nascimento de Madeira entre 1853 ou 1854, isto é, apenas dez anos mais velho que Nazareth.

Através de busca na Hemeroteca Digital Brasileira, também foi possível estabelecer a data de morte de Eduardo Madeira em 1883, por meio de anúncios de missas em sua memória.

Em sua curta vida (cerca de 30 anos), compôs algumas peças, das quais conhecemos apenas a polca “Mude-se para perto” Op.11 “em resposta à polca Moro Longe”, de A. J., S. Monteiro (clique aqui para baixar a partitura), e um pot-pourri para piano que o mesmo arranjou baseado em números da opereta Trunfo às Avessas, de Henrique Alves de Mesquita. Também é possível que tenha composto um recitativo intitulado “Minha alma é triste”, cujo autor aparece referenciado apenas como “Madeira”.

 

Cabeçalho da polca “Mude-se para perto”, de Eduardo Madeira

Segundo Andrade Muricy, foi Eduardo Madeira quem “teria conduzido Ernesto Nazareth à presença do eminente pianista Arthur Napoleão, que muito gostou das peças, elogiando-lhe o ritmo novo”. Napoleão depois se tornaria editor das músicas de Nazareth por toda a vida.

Nazareth e Madeira permaneceram em contato mesmo depois de encerradas as aulas, pois sabemos que se apresentaram juntos tocando peças a 4 mãos em recitais nos dias 8 e 10 de março de 1880, neste último interpretando uma fantasia da ópera O Profeta, de Meyerbeer. Estas são as primeiras apresentações públicas conhecidas de Ernesto Nazareth, e é possível que ele tenha divido o palco com Madeira em outras ocasiões também.

 

Arthur Napoleão (1843-1925)

Pianista virtuoso português que fixou residência no Rio de Janeiro, fundou uma das casas de música mais importantes do Brasil, a Arthur Napoleão & Cia., que foi a primeira a editar músicas de Nazareth, mantendo-as sempre em catálogo.

Como editor de Nazareth, quem sabe o quanto ele influenciou nos gêneros e títulos adotados pelo compositor?

Napoleão compôs dezenas de peças, de grande virtuosismo técnico no estilo da música de salão europeia, e títulos como “Enchantement”, “Le tourbillon”, “Grand galop de concert”, e “A caprichosa”. Também publicou uma série de importantes “18 estudos para virtuoses, para piano”, cada um dedicado a grandes pianistas da época, como Vianna da Motta, Camille Saint-Saëns, Barrozo Netto, Antonietta Rudge, Gottschalk (in memoriam). Dentre as peças conhecidas, não vemos a utilização de ritmos brasileiros ou sincopados.

Nazareth tinha em sua coleção 10 de suas composições, além de uma grande fantasia de concerto que Arthur Napoleão compôs sobre a ópera Il Guarany, de Carlos Gomes.

 

Antonio Martins Pinheiro (filho) (1824- 1910)

Consta que a mãe de Ernesto Nazareth, D. Carolina Augusta da Cunha era exímia pianista e interpretava ao piano peças de autores como Chopin, Beethoven e Arthur Napoleão. Uma das peças de maior dificuldade técnica que Carolina Augusta executava ao piano era o galop de bravura “O Raio”, de Martins Pinheiro (clique aqui para baixar a partitura), com muitos saltos de oitavas em ambas as mãos. Nazareth guardou esta partitura em seu acervo, e provavelmente a executava também.

Cabeçalho do galop de bravura "O raio", de Martins Pinheiro

O nome de Martins Pinheiro ainda é praticamente desconhecido na literatura. Músico amador, teve pelo menos 10 composições publicadas: Amor funesto, recitativo; Carlina,  grande valsa; Experiência, valsa brilhante; Gaúcha, grande valsa;  Hino de Paissandu (com poesia de A. E. Zaluar); Incompreensível; valsa; O raio, galope de bravura op.6; Sardo imperial, quadrilha; Tarantella napolitana (publicada também em arranjo de Lucien Lambert); Vaidosa, polca característica;

Sempre referido como “Dr. Martins Pinheiro”, era filho de um famoso cirurgião de mesmo nome, e também se formou em medicina, em 1848, especializando-se em histeria (indicando que sua área era psiquiatria).

Trabalhou como inspetor de limpeza pública, diretor da Casa de Saúde Previdência (“contra a mortalidade dos escravos”), e ajudante de inspetor geral de saúde dos portos, entre 1868 e 1894.

De sua vida como concertista, sabe-se apenas que se apresentou em um recital em 1867. Consta também que, em 20 de agosto de 1873, “o imperador ouviu a partitura da Fosca [de Carlos Gomes], ao piano, pelo Dr. Martins Pinheiro, das 6 às 11 da noite.” (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Volume 73).

De 1880 a 1886, foi nomeado veador da casa real que servia junto à imperatriz Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II, uma honraria que conferia posição bastante respeitável na hierarquia social do Império, frequentemente destinada a barões, viscondes e marqueses, dentre eles o Duque de Caxias. E em 1889 foi promovido a um título ainda mais nobre, o de “gentil-homem da imperial câmara”. Segundo Sacramento Blake, em seu Dicionário Bibliográfico Brasileiro, Martins Pinheiro também nomeado oficial da ordem da Rosa e comendador da ordem de Cristo.

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Em conferência realizada em 1946, o compositor Brasílio Itiberê II afirmou:

“Certa vez, o meu amigo Oscar Rocha, melômano e folclorista, e um dos homens que melhor conhece a vida e a obra de Nazareth, perguntou-lhe como é que ele tinha chegado a compor os seus tangos, com esse caráter rítmico tão variado e tão inédito, naquela época, entre os compositores de música popular. Nazareth respondeu com simplicidade que ele ouvia muito as polcas e os lundus de Viriato, Callado, Paulino Sacramento e sentiu desejo de transpor para o piano a rítmica dessas polcas-lundus.”

 

Joaquim Antônio da Silva Callado Júnior (1848-1880)

Aluno de Henrique Alves de Mesquita, Callado foi um flautista exímio, e é considerado o pai do choro. Formou por volta de 1870 o histórico conjunto “Choro Carioca”, e compôs dezenas de quadrilhas e polcas, sendo a mais famosa a “Flor Amorosa”. Por volta de 1912, Nazareth gravou a polca “Linguagem do coração” de Callado, juntamente com o flautista Pedro de Alcântara. Não se sabe se Nazareth chegou a conhecê-lo, pois tinha apenas 17 anos quando Callado faleceu. No entanto, suas músicas contribuíram para a formação do estilo de Nazareth, que nos primeiros anos de sua carreira compunha primariamente polcas. Brasílio Itiberê II, por exemplo, observou que a segunda parte da polca Flor Amorosa, de Callado, se assemelha ao início da primeira parte do Odeon.

 

Viriato Figueira da Silva (1851-1883)

Flautista de destaque, foi aluno de Callado no Imperial Conservatório de Música. São conhecidas menos de 20 obras de sua autoria, dentre elas o grande sucesso “Só para moer”. Em março de 1880, Nazareth apresentou-se pela primeira vez em público no Salão do Club Mozart, em um recital do qual também participou Viriato. No ano seguinte, foi publicada a polca “Não caio noutra!!!’, de Nazareth, provavelmente em resposta à polca “Caiu! Não disse?”, de Viriato.

 

Paulino Sacramento (1880-1926)

Trompetista e mestre de banda, Paulino Sacramento é autor de tangos carnavalescos que fizeram grande sucesso em sua época, como “O vatapá”, “Bebê” e “Pierrot”. Assim como a maioria dos compositores brasileiros nascidos no século XIX, sua obra ainda não foi catalogada, de modo que as cerca de oito partituras conhecidas hoje provavelmente representam apenas parte de sua produção. Compôs música para diversos teatros de revista como “O maxixe”, “O jagunço”, “O Rio civiliza-se” e “Sem pés nem cabeça”. Assim como Nazareth, foi um dos fixadores do gênero “tango brasileiro”.

 

Frederico Guilherme Mallio (1863-1926)

Frederico Mallio foi aluno de Henrique Alves de Mesquita e Cavalier Darbilly, vindo a tornar-se um importante pianista e professor de piano no Rio de Janeiro do final do império e início da república, além de uma figura complexa e polemizante. Nascido no mesmo ano de Nazareth, Mallio foi seu amigo desde a adolescência, e ambos chegaram a se apresentar pelo menos seis vezes em público em repertório para duo de pianos entre 1881 (quando Nazareth dedicou a ele a polca “Não caio noutra!!!”) até 1885, quando romperam a amizade devido a uma sucessão de fatos que resultaram em processos judiciais.

No entanto é seguro afirmar que ambos trocaram muitas ideias musicais em sua juventude, se influenciando mutuamente, especialmente no que se refere à técnica pianística de suas composições. Mallio deixou dezenas de composições, que incluem polcas, valsas, quadrilhas (mas não tangos), com alto nível de virtuosismo técnico, comparáveis às peças de Arthur Napoleão.

Para saber mais sobre Frederico Mallio, e sua ligação com Ernesto Nazareth, acesse este texto.

Cabeçalhos da polca “Você não pode”, de Frederico Mallio, e da polca “Você bem sabe!”, de Ernesto Nazareth.

 

João Francisco da Fonseca Costa (Costinha) (ca. 1860? – ca. 1940?)

 

Não se sabe quase nada sobre este pianista que, segundo Alexandre Gonçalves Pinto “fez parte da turma do Julio Barbosa, Nazareth, Aurélio Cavalcanti e

muitos outros”. Autor de valsas, schottisches, maxixes e ragtimes, teve suas músicas publicadas em torno de 1894 e 1918, aparecendo ao lado de Nazareth em catálogos. Existe a suspeita de que uma obra creditada a Nazareth na verdade seja do Costinha (publicaremos um texto em breve sobre esta questão). Não deve ser confundido com o outro pianista também chamado J. F. Fonseca Costa e também apelidado de Costinha, porém cerca de quarenta anos mais novo, e que compunha marchas e sambas carnavalescos nas décadas de 1920 e 1930.

 

Compositores estrangeiros

Nazareth possuía em sua coleção partituras de diversos compositores europeus como Beethoven, Mendelssohn, Moszkowski, Paderewski, Anton Rubinstein, Weber, Bizet e Chaminade, além de transcrições operísticas de Liszt, Tausig e Thalberg, conhecidas por sua dificuldade técnica. Abaixo listamos alguns dos compositores estrangeiros com ligação mais direta a Nazareth.

 

Frédéric Chopin (1810-1849)

Chamado de “o poeta do piano”, Chopin revolucionou a técnica do instrumento, e consolidou a linguagem do período romântico, influenciando todos os compositores que se seguiram.

Francisco Mignone, que conheceu Nazareth e o ouviu tocar, afirmou que Nazareth tocava quase todas as baladas de Chopin, peças que exigem grande maturidade artística e técnica para serem executadas.

É provável que Nazareth tocasse muitas outras peças de Chopin, pois, em sua coleção, havia um total de 105 peças do compositor polonês, incluindo os conjuntos completos de estudos, baladas e mazurcas e algumas peças avulsas como as polonaises e valsas.

Nazareth compôs peças de influência notadamente chopiniana, como o "Improviso", o "Noturno" e a "Polonesa". Esta influência pode ser vista também em suas diversas valsas, e em alguns tangos, revelando um compositor atento aos padrões harmônicos e pianísticos descobertos por Chopin.

Cabeçalho da “Polonesa” de Ernesto Nazareth, manuscrito autógrafo depositado na Biblioteca Nacional.

 

Franz Liszt (1811-1886)

Considerado o maior pianista de todos os tempos, o húngaro Franz Liszt arrebatou plateias em sua juventude, e transformou a música da segunda metade do século XIX, pavimentando novos caminhos harmônicos para o século XX.

Nazareth possuía em seu acervo algumas de suas peças, como "La Campanella", as seis "Consolações", a "Dança Macabra" (de Saint-Saëns, transcrita por Liszt), o "Liebestraum No.2" e a "Rapsódia Húngara No.2".

Algumas peças de Nazareth possuem trechos que exigem grande virtuosismo técnico, como seu "Capricho", que pode ter tido a obra de Liszt pelo menos como inspiração inicial.

 

Cabeçalho do "Capricho", de Ernesto Nazareth

Também é interessante notar que algumas técnicas muito engenhosas que Nazareth utilizava em seus tangos e polcas também são vistas na obra de Franz Liszt, como por exemplo o padrão de “nota repetida + oitava” presente na primeira parte da polca "Cruz, Perigo!!", que também aparece na "Rapsódia Húngara No.2" e na "Campanella" de Liszt (ambas presentes na coleção particular de Nazareth):

Trechos da polca “Cruz, Perigo!!” de Ernesto Nazareth, e da "Rapsódia Húngara No.2" de Franz Liszt, em que se utiliza a mesma técnica na mão direita.

Outro exemplo que aparece na obra de ambos, provavelmente não por acaso, é a técnica em que o polegar sobe com uma melodia, enquanto o 5º dedo permanece na mesma nota. Abaixo vemos exemplo desta técnica no "Concerto No.1 para piano e orquestra" de Franz Liszt, e no tango "Guerreiro", de Nazareth

Trecho do terceiro movimento do "Concerto No.1 para piano e orquestra" de Franz Liszt , e trecho da primeira parte do tango brasileiro “Guerreiro”, de Nazareth. As setas indicam o uso da mesma técnica pianística.

 

Charles Lucien Lambert (pai) (1828–1896)

Por volta de 1881, após já ter algumas músicas publicadas, Ernesto Nazareth teve oito aulas com um afamado professor de piano da época chamado Lucien Lambert, cujo filho, de mesmo nome, também era pianista. Durante muito tempo acreditou-se que Lambert fosse francês, como mencionado por Nazareth em uma entrevista, e na literatura subsequente: “Lições só recebi oito em minha vida, as de um professor francês, que, durante a minha mocidade, viveu aqui no Rio de Janeiro. Também, depois disso, nunca mais tive quem me ensinasse a tocar e muito menos a compor” (Folha da Noite, 8 de setembro de 1924). No entanto, agora se sabe que seu nome completo era Charles Lucien Lambert, e que nasceu na verdade em Nova Orleans, EUA, na primeira metade do século XIX.

Lucien era conterrâneo de Gottschalk, e ambos cultivavam uma rivalidade artística amigável como compositores e pianistas virtuosos aspirantes (curiosamente, os dois viriam a falecer no Rio de Janeiro).

Após se mudar com a família para o Brasil na década de 1860, Lucien Lambert (pai) abriu uma loja de pianos e partituras e posteriormente foi convidado por Arthur Napoleão a ser professor honorário do Instituto Nacional de Música.

Provavelmente foi através de Arthur Napoleão que Nazareth chegou a Lambert. Durante as aulas particulares, Ernesto provavelmente teve lições de técnica pianística com Lambert, pois este escreveu um compêndio em 1881 com uma coletânea de exercícios e estudos extraídos das Sonatas de Beethoven, que, aliás, constavam todas na coleção de Nazareth.

No entanto, é provável que Ernesto também tenha tido alguma orientação na arte da composição. Mário de Andrade sintetiza as lições com Lambert do seguinte modo: “Quando [Nazareth] principiou compondo, somou umas oito lições com o prof. Lambert, que repetiu-lhe oito vezes este conselho bom: - ‘Pinta as hastes das notas mais de pé, Ernesto’. E foi tudo. (...)”.

Como Gottschalk, Lambert era compositor de peças de salão, como caprichos, mazurcas e valses brillantes, além de polcas e habaneras, ambientadas na tradição do piano romântico, com pretensão virtuosística, uso grandioso do piano de modo a impressionar o ouvinte. Esta tradição pianística era muito apreciada em saraus da época, e Nazareth pode tê-la herdado através das poucas aulas que teve com Lambert.

Lambert teve diversas partituras publicadas no Brasil durante o segundo império, dentre elas: "Daniella", polca brilhante; "Elegia"; "La Grande Duchesse", polca brilhante, "Marche funèbre"; "Olga"; "Prenuvienne"; "Plaisir des champs", morceau de genre; "Sombras queridas", sonho; e "Voix celeste", revérie. E como arranjador, teve publicadas paráfrases e fantasias sobre peças como "O Guarani" e "Condor" (de Carlos Gomes), "O vagabundo" e "Ali-babá" (de Henrique Alves de Mesquita); e "Zamacueca" (de José White).

 

Cabeçalho da dança chilena “Zamacueca”, do violinista José White, transcrita para piano solo por Lucien Lambert.

 

Louis Moreau Gottschalk (1829 - 1869)

Nascido em Nova Orleans, Gottschalk foi o primeiro grande pianista americano, sendo admirado por Chopin, Thalberg e Berlioz. Sua obra cheia de síncopes e com alta originalidade rítmica foi inspirada na música negra americana e caribenha, e abriu caminho para o ragtime décadas depois.

Pelo menos 51 peças de Gottschalk eram vendidas no Rio de Janeiro pela editora Narciso & Arthur Napoleão, o que o torna possivelmente o compositor estrangeiro com mais obras publicadas no Brasil durante o século XIX.

Nazareth possuía em sua coleção 30 partituras de Gottschalk, sendo o “Grand Scherzo” e o “Tremolo” duas peças de sua predileção, executadas por ele com frequência. Além disso, o biógrafo Luiz Antonio de Almeida afirma que Nazareth, quando tinha seis anos, se encontrou com o próprio Gottschalk durante as preparações para um dos recitais-monstro organizados por ele no dia 5 de outubro de 1869 para duas orquestras e 31 pianistas, dentre os quais participaram Lucien Lambert pai e filho.

Embora existam inúmeros padrões na obra de Gottschalk que parecem ter influenciado Nazareth, ainda não existe um estudo que compare de maneira pormenorizada as partituras de ambos os compositores.

Gottschalk compôs diversas músicas sobre melodias dos escravos norte-americanos, sendo dois exemplos muito interessantes suas peças “Bamboula”, subtitulada “danse de nègres”, e “The Banjo”, compostas nas décadas de 1840 e 1850. Quem sabe o quanto estas peças derivadas da música negra norte-americana podem ter influenciado Nazareth a compor suas próprias peças inspiradas em batuques e lundus brasileiros?

 

Cabeçalho da partitura “Bamboula, danse de nègres”, de Gottschalk

***

Dedicatórias e dedicatários

Outro aspecto que nos ajuda a conhecer um pouco mais o universo musical de Nazareth são as peças que recebeu como homenagem.

À medida em que se tornou conhecido, Nazareth teve diversas peças dedicadas e ele ainda em vida.  São os casos da valsa espanhola “Soledad” de Aurélio Cavalcanti, dedicada “ao amigo e colega Ernesto Nazareth”; a polca-tango de difícil execução “Nazareth” de Antônio Cardoso de Menezes (pai de Oswaldo Cardoso de Menezes, e avô da pianista Carolina), dedicada “ao talentoso compositor e amigo Ernesto Nazareth” na década de 1920. Alguns anos antes, possivelmente retribuindo a dedicatória do tango "Carioca", o ator e cantor Olympio Nogueira compôs sua única peça conhecida: "Suíte!" para piano solo, em cujo manuscrito consta "ao bom camarada o maestro Ernesto Nazareth, offerece o autor esta insignificância. Rio 11-5-1914".

Em 1920, Theophilo Magalhães dedicou seu tango “Não vou n'isso!...” Op.25 “Ao rei do tango Ernesto Nazareth”. Em 1926 João Bifano dedicou “ao inspirado compositor Ernesto Nazareth” seu tango “Só no Nazareth”, e no exemplar da coleção do homenageado, consta a dedicatória manuscrita “como demonstracção de grande admiração, offerece ao primus inter pares dos compositores brasileiros Ernesto Nazareth, o autor”. E ainda nesta época, A. Paraguassú dedicou seu tango “Jovial” "ao insuperável compositor Ernesto Nazareth”. Em 1930, Teotônio Correa teve seu "Bancando o Nazareth" gravado pelo grupo Três Sustenidos.

Mas talvez a homenagem mais famosa que recebeu foi a de seu amigo Heitor Villa-Lobos, que lhe dedicou em 1920 o primeiro de sua monumental série de Choros, para violão solo, e que considerava Nazareth "a verdadeira encarnação da alma musical brasileira".

 

Do outro lado da moeda, vemos Nazareth dedicando suas músicas aos seguintes músicos:

Alberto Motta, pianista (Rayon d’or, polca-tango, 1922)

Antonio Tavares (Sustenta a... nota..., tango brasileiro, 1919)

Arturo La Rosa, compositor (Atlântico, tango brasileiro, 1921)

Catullo da Paixão Cearense, poeta, violonista e cantor (Confidências, valsa, 1913)

Eduardo Souto, compositor e pianista (O alvorecer, tango de salão, 1924)

Frederico Mallio, compositor, pianista (Não caio noutra!!!, 1881)

Heitor Villa-Lobos, compositor, violoncelista e maestro (Improviso, estudo para concerto, 1922)

Henrique Alves de Mesquita, compositor, trompetista e maestro (Mesquitinha, tango característico, 1914)

Henrique Oswald, compositor e pianista (Batuque, tango característico, 1913)

Horacio Fluminense, violoncelista (A bela Melusina, polca, 1888)

José de Abreu (talvez Zequinha de Abreu), compositor (Paulicéia, como és formosa!..., tango brasileiro, 1921)

Julio A. P. da Cunha, compositor, tio de Ernesto (Gracietta, polca, 1880)

Miécio Horszowski, pianista (Proeminente, tango brasileiro, 1926)

Olympio Nogueira, cantor (Carioca, tango brasileiro, 1913)

Orquestra da Brahma, dirigida pelo Maestro Russo (Escorregando, tango brasileiro, 1923)

Oscar Guanabarino, crítico musical e pianista (Sutil, tango brasileiro, 1928)

Sátyro Bilhar (Tenebroso, tango brasileiro, 1913)

 

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Agradecemos ao pesquisador Rodrigo Alzuguir, que encontrou a matéria do Correio Mercantil de 17 de outubro de 1865; e ao pesquisador Eiliko Flores, que forneceu o poema "No espaço", de Machado de Assis.

TAGS História, Obras

COMENTÁRIOS

Evandro Higa - 25.03.2015

Ragtime

Olá Alexandre. Parabéns pelo seu trabalho artístico e musicológico que venho acompanhando há tempos. É uma contribuição imensa à música brasileira. Quanto a essas conexões que vc aponta do Nazareth com outros compositores, o que vc acha do ragtime de New Orleans e o Nazareth? Como o Lucien Lambert veio de lá, seria possível ter transmitido ao Nazareth alguns dos procedimentos composicionais do ragtime? Me parece que há muitas semelhanças com o tango brasileiro. Abraço.

Adércio Simões Franco - 24.03.2015

o universo musical nazarethiano

Pesquisa profunda e inédita, não somente com referência a Ernesto Nazareth, como também para se conhecer a rica discografia dos compositores da época. Aplausos! 24 mar 2015

Hélio Amaral - 24.03.2015

Interessantíssimo, Alexandre...

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