NAZARETH E SUA ÉPOCA (PARTE 1): FREDERICO MALLIO
Alexandre Dias 05.03.2013
Existiu no Rio de Janeiro um pianista nascido em 1863, que mantinha a família por meio de aulas de piano, e que publicou dezenas de polcas e valsas que passeavam entre o popular e o erudito. Essa frase poderia integrar um prefácio sobre Ernesto Nazareth, mas estamos falando de Frederico Mallio, uma personalidade importante para se compreender parte da história musical do Rio de Janeiro, e provavelmente desvendar parte da biografia e obra de Nazareth.
Seu nome veio à minha atenção durante as pesquisas para a edição crítica que está sendo realizada juntamente com a prof. Dra. Sara Cohen. Ao analisarmos a partitura da polca Não caio noutra!!!, percebemos que havia ali uma informação que passara despercebida dos catálogos da obra de Nazareth: a dedicatória “A seu amigo e colega Frederico Mallio”.
Esta partitura (Arthur Napoleão & C. nº de chapa 5792) provavelmente foi impressa a partir do mesmo clichê de metal da sua primeira edição, isto porque em algumas de suas edições não consta nada acima do título, como é o caso do tango Garoto.
Essa informação despertou a lembrança de que Nazareth e Mallio foram amigos, e que chegaram a se apresentar juntos em um recital em 1885. Conversando depois com o biógrafo Luiz Antonio de Almeida, soube que o Mallio teria se apaixonado por uma filha do Nazareth, 30 anos mais jovem, e que Nazareth teria rompido laços com este por não aprovar o relacionamento. Concluímos então que, devido a isso, a dedicatória teria sido apagada de edições subsequentes, fechando o quebra-cabeças. Porém o caso parece ser um pouco mais complexo que isto.
Pesquisando na internet, descobri uma antiga comunidade da família Mallio no Orkut, e através dela consegui entrar em contato com sua neta, Ignez Rodrigues, que gentilmente me cedeu diversos textos e partituras, que ilustrarão este texto.
Depois, buscando na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, deparei-me com 588 matérias (principalmente de O Paiz e da Gazeta de Notícias) que faziam menção a Frederico Mallio, e que, se colocadas em sequência, contariam praticamente toda sua vida. Estas matérias trouxeram à luz informações novas, inclusive sobre sua ligação com Nazareth, que apresentarei a seguir.
Frederico Mallio, ca. 1906
Segundo informações prestadas pela família, Frederico Guilherme Mallio nasceu em 1º de setembro de 1863 no Rio de Janeiro (apesar de alguns jornais informarem que teria nascido em 1866 em Minas Gerais) e faleceu em 12 de agosto de 1926, na mesma cidade.
Estudou no Imperial Conservatório de Música, onde teve como professor de teoria e solfejo o maestro Henrique Alves de Mesquita, de piano o maestro Cavalier Darbilly e de harmonia e composição Hugo Bussemeyer.
Começou a dar aulas particulares de piano e solfejo em sua residência, quando ainda era adolescente, mas logo viria a expandir suas atividades. Com seu forte espírito empreendedor, organizou diversos concertos populares, com a participação de Arthur Camilo e Nicolino Milano.
Anúncio de um dos vários concertos que Mallio organizou
Casou-se em 1883 com Alice Mallio, com quem teve pelo menos 4 filhos: Manuel (falecido recém-nascido), Fiordaliza (falecida quando criança), Cyrofredo e Zeffiretta. Depois do falecimento de Alice em 1903 (provavelmente devido a um acidente de queimadura doméstica noticiado nos jornais no mesmo ano), casou-se com Comba Pereira Esteves em 1910.
Tinha amigos da nobreza imperial, que o convidaram para dar um recital em Barbacena em agosto de 1889. Isto provavelmente está ligado ao título que recebeu de Pianista e Organista da Casa Imperial em 23 de setembro de 1889, uma chamada “mordomia-mor” que D. Pedro II só concedera a um outro músico, o violinista cubano José White. Ironicamente, o império seria extinto menos de dois meses depois com a proclamação da república em 15 de novembro. Consta que Mallio era abolicionista (tocando juntamente com Nazareth, em recitais em benefício da causa), e em 1896 é noticiada sua afiliação ao Partido Republicano Nacional.
Símbolo no frontispício do documento da Casa Imperial que outorga o título a Frederico Mallio.
Em 1890, idealizou um novo projeto que pelos próximos seis anos só viria a lhe dar dores de cabeça: a criação do Conservatório de Barbacena (também referido como Conservatório de Minas Geais). Após algumas viagens de Mallio à então capital Minas, Ouro Preto, o governador Crispim Jacques Bias Fortes acatou a ideia com a condição de que não se onerassem os cofres públicos. Como solução, foi proposta a criação de uma loteria que financiaria a construção do conservatório.
Em 1891, foi deferido o requerimento para ser inscrita a concessão de 90 loterias em favor do conservatório, e no mesmo ano começou o primeiro dos problemas: o fiscal das loterias denunciou que o título “Loteria do Estado de Minas Gerais” não poderia ser usado por Mallio, mas apenas por uma pessoa chamada José Custódio de Oliveira, concessionário das mesmas. Em 1892 o dinheiro foi liberado, e as construções do conservatório começaram.
Anúncio na Gazeta de notícias, 24 de março de 1892
Porém, neste mesmo ano o prof. Miguel Cardoso, sócio de Mallio no empreendimento e que havia sido apontado por ele como futuro diretor do conservatório, ficou melindrado quando viumatérias no jornal O Paiz afirmando que o diretor seria o Mallio. Em junho de 1892, pelo menos três cartas de cada uma das partes foram trocadas no jornal com acusações pessoais buscando diminuir a reputação do outro, o que resultou na saída de Cardoso deste empreendimento.
No mesmo mês, Frederico busca uma saída para esta crise: escreveu para Carlos Gomes, o músico brasileiro de maior fama internacional na época, convidando-o para ser diretor do conservatório. A resposta chegou de Milão em 28 de junho:
Cabeçalho da carta escrita por Carlos Gomes endereçada a Frederico Mallio em 28/06/1892 (acervo da família Mallio)
“Milão 28-06-1892
Distincto artista sr. Frederico Mallio
Com sincero prazer recebo e cumpro o dever de responder à estimada carta de V. S. datada de 31 de Maio último.
O assumpto da mencionada carta é da mais alta importancia, eu como artista e brasileiro patriota tomo vivo o interesse pelo honroso offerecimento que acabo de receber.
Antes porém que eu possa dar a V. S. uma resposta positiva é necessário haver esclarecimento reciproco, cousa que não é facil obter com brevidade, visto a distancia em que nos achamos ...
O assumpto é serio, e, acceitando eu o offerecimento, muda ela radicalmente a minha posição como artista e como pae de família!
Naturalmente, longe da Pátria não posso dizer logo: "sim", sem o conhecimento profundo do compromisso e da responsabilidade que tomaria sobre mim.
Felizmente parto a 3 de Julho para o Brasil e chegarei ao Rio de Janeiro por todo o mez. Teremos portanto todo o tempo para conversar e examinar o projecto, etc., etc. Desde o anno passado tive desejo de visitar Barbacena, mas desta vez creio que poderemos juntos effectuar o meu projecto da visita.
Até breve, pois, muito breve.
Agradecendo a fineza e a lembrança de tão patriótico offerecimento, passo a saudar V. S. declarando-me
Seu obrigadissimo collega
Carlos Gomes"
Em abril de 1893, Mallio publicou uma carta nO Paiz louvando Carlos Gomes e anunciando que ele aceitara a direção do Conservatório de Barbacena, e em 10 de junho de 1893 consta que Carlos Gomes teria publicado uma carta nO Paiz sobre esta questão, porém não a encontrei na referida edição. Em seguida, foi divulgada em 1894 uma lista dos professores que integrariam o conservatório, mencionando Carlos Gomes como futuro diretor.
Nesse mesmo ano requereu à Intendência Municipal concessão por cinco anos para dar concertos populares no teatro S. Pedro de Alcântara, com sorteio de prêmios, mas o pedido foi negado.
O aporte financeiro para o conservatório foi interrompido novamente, e Frederico se viu obrigado a despender dinheiro do próprio bolso para que não houvesse quebra de contrato com a empreiteira. Depois foi autorizado a se ressarcir do montante gasto.
Em agosto de 1895 a obra foi reiniciada, e em 1896 Mallio mencionou em uma carta ao jornal que o conservatório seria inaugurado em 1º de junho. Porém o dinheiro necessário para completar o conservatório não foi suficiente, e Mallio acabou abandonando o projeto. Das 90 extrações previstas, apenas 5 foram repassadas para o conservatório.
Em 1897, juntamente com um grupo de colegas, funda a Academia Livre de Música, dirigida por Cavalier Darbilly, e da qual Mallio integrava o conselho deliberativo. Em dezembro do mesmo ano a escola passou a chamar-se Conservatório Livre de Música, em novo prédio na Praça Tiradentes. Mallio foi anunciado como vice-diretor do Conservatório em setembro de 1898, além de professor de teoria elementar, solfejo e piano.
Em 1901, afastou-se do Conservatório “para discutir judicialmente a posse e manutenção do Conservatório Livre de Música, além de fazer valer do seu direito de sócio em partes iguais, perante os tribunais, e pedir a liquidação do referido estabelecimento”, segundo afirmou em carta a jornal, depois de um desentendimento com o diretor Darbilly, seu antigo professor de piano. Conclui afirmando que sua saída não foi amigável.
No mesmo ano fundou uma nova instituição: o Ginásio de Música, desta vez como diretor, além de professor de teoria e piano, transferindo os alunos para a nova instituição.
Em 1910 foi anunciada a inauguração de uma escola de piano anexa ao Ginásio de Música no bairro do Méier, sob a direção de Mallio (a notícia não deixa claro se é uma nova dissidência, ou apenas uma expansão).
Seu conservatório preparou centenas de alunos ao longo dos vários anos em que existiu, provavelmente até o ano de sua morte em 1926. Com resultado de sua experiência pedagógica publicou um “curso primário de piano” (Casa Vieira Machado V.M. & C. 314, anterior a 1906) que foi aprovado pelo Conselho Superior de Instrução Pública. Barrozo Neto, que foi seu aluno particular, dedicou sua “Primeira gavota” a ele por volta de 1890, composta antes de completar 9 anos.
Frontispício da Primeira Gavota de Barrozo Netto, dedicada a Frederico Mallio
Em 1915 Mallio afirmou em uma entrevista que tinha esperança que se criasse uma Academia Brasileira de Música, que, como sabemos, só viria a ser criada 30 anos depois por Villa-Lobos, em 1945.
Em 1917, vemos esta ideia transformada na criação de um “Supremo Tribunal da Música” (STM). Mallio explica em entrevista as intenções da nova instituição: “o STM, que será uma academia, exercerá no gênero a mesma influência que a Academia de Letras exerce no domínio da literatura nacional. A nossa associação amparará todos os artistas da música sempre que forem feridos em seus direitos”.
Mallio organizou reuniões com a classe artístico-musical em seu Ginásio em fevereiro de 1917 para determinar quem seriam os membros. Os membros aprovados por voto foram: Arthur Napoleão, Alberto Nepomuceno, Barrozo Netto, Francisco Braga, Frederico Nascimento, Henrique Oswald e o crítico Barbosa Rodrigues. Frederico Mallio foi eleito o orador oficial.
Em outra entrevista, ele afirma que o STM funcionaria como uma espécie de SBAT, que ainda não existia: “O supremo tribunal de música vai discutir o direito autoral, distinguindo-o do direito de propriedade, vai estudar a ortografia musical, para que ela não continue a ser desrespeitada, vai tratar da unificação de ideias em relação à música e estimular os artistas com prêmios ao mérito, mediante concurso.”
O nome pomposo foi criticado por alguns jornais, chegando a virar objeto de chacota. Talvez isso tenha motivado a nova reunião que se deu em abril no Ginásio de Música para se discutir “mudança do título dado pelo aventor da ideia e combinação das bases para o seu funcionamento no Silogeu”.
Nada estava oficial ainda, pois eles dependiam de aprovação do governo. Depois dessa data não encontrei mais referências ao Supremo Tribunal da Música, nem sobre sua possível mudança de nome. Ao que tudo indica, o STM não chegou a ser criado.
Coincidência ou não, a SBAT foi fundada sete meses depois, sem a participação de Mallio ou de quaisquer dos membros mencionados acima.
Foto da assembleia para eleição dos membros do Supremo Tribunal da Música (O Imparcial, 5 de fevereiro de 1917)
Mallio era ativo colaborador de jornais, informando seus projetos e escrevendo diversas cartas opinando sobre assuntos relativos à educação musical. Jornais como O Paiz e Gazeta de Notícias forneciam amplo espaço para ele e o defendiam sempre que necessário. Além disso, ele assinava a coluna de Belas Artes do jornal A Pátria, e uma coluna de mesmo nome para o jornal O Popular, de Barbacena, que circulou na cidade entre 1889 e 1890.
Alguns jornais o mencionavam constantemente como um amigo querido, notificando aniversários seus e de sua esposa, suas idas e vindas a Minas, seu estado de saúde, e até mesmo ocorrências graves como o assalto que sofreu em 1894 na Rua Felippe Camarão ou a agressão anônima a ele e a sua esposa na Rua da Imperatriz em 1896.
Também ficamos sabendo de quando foi preso por engano em 1892, quando emitiu um telegrama para a cidade de Barbacena afirmando que não poderia regressar no dia combinado, porque seria decretado no Rio estado de sítio, boato que ouvira durante sua estada no Rio. O telegrama chegou às mãos do chefe de polícia, que o prendeu por 5 horas. Depois o soltou convencido de sua inocência.
Dentre as várias cartas que escreveu aos jornais, Mallio criticou em circunstâncias diversas os diretores do Instituto Nacional de Música: Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno e Abdon Milanez, e também a mudança iniciada em 1915 para o prédio atual no Passeio Público.
As críticas eram frequentemente ad hominem, talvez revelando uma rivalidade pessoal. Por volta de 1916, por exemplo, afirmou sobre Abdon Milanez:
“O Dr. Abdon Milanez pode ser um excelente engenheiro civil e, como tal, construir excelentes caminhos de ferro, pontes desde o Corcovado ao Pão de Açúcar (...) e outras maravilhas ao serviço da mecânica moderna. (...) Como músico, porém, o [ilegível] diretor de um estabelecimento de ensino musical, parece ser um tanto desastrado, levando-se muitas vezes por paixões pouco afinadas...” E menciona a expulsão do professor Luiz Amabile, que era seu amigo.
Abdon Milanez, 1909 (Coleção Luiz Antonio de Almeida)
Essa contenda provavelmente teve suas raízes em 1896, quando Mallio compareceu a um concerto no Instituto Nacional de Música como crítico musical para o jornal A Pátria, e por algum motivo decidiu entrar na biblioteca, que estava fechada por ser domingo. O então diretor do instituto, Leopoldo Miguez, quando informado disso, pediu que retirassem Frederico de lá, e o acompanhassem de volta ao salão. Mallio depois mostrou sua indignação publicando ataques a Miguez, criticando a atitude que teve, questionando o preço cobrado pelo aluguel do salão, além de questionar as habilidades de Alberto Nepomuceno como organista, então professor de órgão do instituto. O jornal Cidade do Rio entrou na briga defendendo Miguez e várias farpas foram trocadas por escrito.
Isto se arrastou até pelo menos 1890, quando houve um concurso para se escolher um novo Hino Nacional. Ganhou o hino de Leopoldo Miguez, que iria substituir o de Francisco Manoel da Silva, que não era oficial. No entanto, sabemos que, devido a protestos populares e à própria decisão do marechal Deodoro, o hino escolhido de fato acabou sendo o de Francisco Manoel da Silva, que em 1909 recebeu letra de Osório Duque Estrada, oficializada em 1922. O hino de Miguez foi transformado no Hino da Proclamação da República.
Uma notícia de 12 de abril de 1890 na Gazeta de Notícias indica que Frederico Mallio se inscreveu neste concurso, e quando solicitou a partitura de volta, informaram que seu hino havia desaparecido.
Isto somado à rixa que já tinha com Miguez pode tê-lo motivado a escrever um “artigo-protesto”, que o jornal O Popular, de Barbacena, publicou à parte como um livreto de 16 páginas. “Foi um concurso cheio de peripécias desagradáveis para a nossa historia”, afirmou. Além de críticas à música, afirmando que era um plágio da Marselhesa e que continha erros de contraponto como oitavas ocultas, criticou a ambiguidade do edital, e denunciou que Miguez estava presente na reunião secreta que escolheria seu próprio hino. Seu pedido de anulação do concurso e de reapreciação dos outros hinos que foram submetidos aparentemente não teve êxito.
Em 4 de fevereiro de 1906 foi publicado um livreto intitulado “Frederico Mallio - Homenagem – traços biográficos", por seus amigos Prof. Gustavo de Paula Reis, Dr. Symphronio Cardoso e C.nel Hilario de Andrade”, por ocasião do 6º aniversário do Ginásio de Música. O texto louva as diversas atividades de Mallio, além de oferecer preciosas informações biográficas (clique aqui para baixar uma transcrição do texto em pdf).
Frostispício da Homenagem a Frederico Mallio publicada em 1906.
Os textos de Mallio aos jornais eram em geral apaixonados, assim como os daqueles que o defendiam e dos que o criticavam. Portanto não é de se espantar que fosse um homem de muitos amigos e inimigos.
Isso nos leva a Ernesto Nazareth, que passou de uma categoria a outra, na década de 1880.
Frederico Mallio e Ernesto Nazareth
Frederico Mallio, 1917. Ernesto Nazareth, 1908.
Como mencionado, Mallio e Nazareth eram amigos em 1881, quando foi publicada a polca “Não caio noutra!!!” com a dedicatória “A seu amigo e colega Frederico Mallio”. Ambos tinham 18 anos, e é possível que a amizade viesse de algum tempo antes. Sua afinidade musical levou-os a tocarem peças a dois pianos e quatro mãos em recitais públicos. Durante a pesquisa, apareceram referências a outros recitais além do já conhecido de 1885, totalizando pelo menos seis eventos em que ambos tocaram juntos:
10 de julho de 1881, Theatro S. Luiz, festival em honra à memória de Castro Alves. Repertório não-informado.
25 de setembro de 1881, Theatro Recreio Dramático. Tocaram “dueto de pianos”.
1º de novembro de 1881, Theatro Recreio Dramático, em benefício da Associação Central Emancipadora. “Grande Serenata de Widor, quinteto para violino, flauta, violoncelo, harmonium e piano, pelos Srs. Professores A. Bernardelli, Silveira, Horácio Fluminence, F. Mallio e Ernesto Nazareth”.
27 de novembro de 1881, salão do Congresso Ginástico Português, realizado pela Associação Geral Emancipadora. “1ª grande serenata de Widor, quinteto para violino, flauta, violoncelo, harmonium e piano, pelos Srs. professores A. Bernardelli, Silveira, Horacio Fluminence, F. Mallio e Ernesto Nazareth e também: Adagio e rondó do trio de Beriot, para violino, violoncelo e piano, pelos professores Bernardelli, Fluminence e Nazareth. Também encontramos: Souvenir de Florence, de Ketterer, pelo professor E. Nazareth e Fantasia da opera Aída, de Fumagalli, para piano, pelo Sr. Frederico Mallio.
4 de novembro de 1882. Marcha para piano e harmonium e Grande Dueto para piano a quatro mãos e um quinteto para piano harmonium, violino, violoncelo e flauta.
26 de setembro de 1885. Clube de São Cristóvão. “dueto de piano pelos Srs. Professores F. Mallio e E. Nazareth“ – Grande duo de Ravina sobre Euryanthe de Weber Op.9
Portanto é seguro afirmar que eles foram amigos até pelo menos 1885.
Essa amizade provavelmente se estendia para os domínios da composição de cada um, pois vemos múltiplas sobreposições nas obras de ambos.
Além de terem a mesma idade e usarem bigodes à kaiser, ambos eram ótimos pianistas com aparato técnico suficiente para tocar grandes transcrições operísticas para piano, e compuseram muitas peças com influência erudita da música de salão europeia além das saltitantes polcas brasileiras, valsas e quadrilhas, cada vez mais em voga.
Ambos tiveram peças anunciadas em jornais simultaneamente, como é o caso das polcas “Pindaíba”, de Mallio, e “Gentes! O imposto pegou?”, de Nazareth (Jornal do Commercio, dia desconhecido, 1880).
Ao ler as partituras que consegui, a primeira semelhança que me chamou a atenção foi a polca de Mallio intitulada “Você não pode!”, publicada em 1881, com a polca-lundu “Você bem sabe” de Nazareth, publicada em 1878.
Além da proximidade dos títulos, ambas são em ré bemol maior, uma tonalidade considerada “difícil” para o piano, e o mais interessante é que a introdução de ambas é muito similar, fazendo uso de uma subida cromática na mão direita e caída cromática na esquerda, com os mesmos acordes.
Ambas foram publicadas por Viúva Filippone, e a polca de Nazareth aparece na propaganda da capa da partitura da polca de Mallio.
Isso leva a acreditar que ambos estavam dialogando, utilizando de uma prática muito comum na época, que era das “polcas-pergunta” e “polcas-resposta”.
Mallio adotou essa prática explicitamente na polca “Quem desmancha a diferença?...”, que afirmava no subtítulo: “em resposta às polcas ‘Há alguma diferença?...’ e ‘Se há diferença, desmancha-se’ ". Estas são mencionadas na crônica de Machado de Assis publicada em de 20 de janeiro de 1887 na Gazeta de Holanda:
“(...)
Chega a polca, e, sem detença,
Vendo a discussão, engancha-se,
E resolve: - Há diferença?
- Se há diferença, desmancha-se.
Digam-me se há mistério,
Juiz, conselho de Estado,
Que resolva este mistério
De modo mais modulado
É simples, quatro compassos,
E muito saracoteio,
Cinturas presas nos braços,
Gravatas cheirando o seio.
- Há diferença? diz ela.
Logo ele: - se há diferença,
Desmancha-se: e o belo e a bela
Voltam à primeira avença.
(...)”
Há uma polca em sua obra que serve tanto como pergunta como resposta:
“Não sei o nome” (1891 ou anterior). O compositor Antonio Cardoso de Menezes (avô da pianista Carolina), também compôs alguns exemplos de “polcas-pergunta”, como é o caso de “Tem par para esta?” e “Onde Está o Gato?”. Mallio provavelmente respondeu a uma das polcas de Cardoso de Menezes, a “Quem Dançar, Casa”, por meio da “Quem casa não pensa”.
Isso levanta a possibilidade, mesmo que remota, de a polca “Não caio noutra!!!” de Nazareth ter sido uma resposta à polca “Caiu n’água, pato” (1891 ou anterior) de Mallio, em vez de ser uma resposta à polca “Caiu! Não Disse!” (1880) de Viriato Figueira.
Outro denominador comum a cambos é a admiração por Chopin. Nazareth manifestava essa admiração abertamente tanto por depoimentos quanto através de suas obras, como a "Polonesa" e o "Noturno". Mallio também o fazia, através de peças como a valsa-capricho "Rimembranza di Chopin":
Anuncio da valsa-capricho “Rimembranza di Chopin” de Frederico Mallio, publicada nO Paiz, 1894.
Nela vemos algumas semelhanças com outras peças de Nazareth, como exemplifico a seguir:
Arpejo caindo em notas de ornamento:
Mallio: Rimembranza di Chopin (valsa-capricho, 1893 ou anterior)
Nazareth: O nome dela (grande valsa brilhante, 1878)
Frases similares
Mallio: Rimembranza di Chopin (valsa-capricho, 1893 ou anterior)
Nazareth: O nome dela (grande valsa brilhante, 1878)
Acordes caindo em cromática
Mallio: Rimenbranza di Chopin (valsa-capricho, 1893 ou anterior)
Nazareth: Polonesa (c. 1920)
Podemos encontrar mais sobreposições em outras peças:
Arpejo distribuído entre as duas mãos
Mallio: Auri-verde (grande valsa de estilo, 1894)
Nazareth: Caçadora (polca, 1895)
Melodia em oitavas recheada por intervalos
Mallio: Auri-verde (grande valsa de estilo, 1894)
Nazareth: Dirce (valsa-capricho, 1922)
Quiálteras de 7 e de 8 em uma valsa
Mallio: Auri-verde (grande valsa de estilo, 1894)
Nazareth: O nome dela (grande valsa brilhante, 1878)
Terminação usada por Nazareth em algumas polcas
Mallio: Cherchez la femme (polca, 1890)
Nazareth: A Fonte do Suspiro (polca, 1882)
Virada conectando duas partes com oitavas caindo em cromática
Mallio: Chiquita (polca, ca. 1883)
Nazareth: Você bem sabe (polca-lundu, 1877)
Melodia caminhando por acordes na mão direita
Mallio: Como és formosa (polca brilhante, 1886)
Nazareth: Pyrilampo (tango brasileiro, 1903)
Arpejos descendentes na mão esquerda em moto perpetuo
Mallio: Pas d’argent – pas de suisse (polca, 1890)
Nazareth: Topázio líquido (tango brasileiro, 1914)
Escala cromática em notas de ornamento
Mallio: Recuerdo (pensamento poético, 1892)
Nazareth: Mágoas (meditação, ca. 1918)
Mãos que se cruzam
Mallio: Você gosta de mim? (polca, 1882)
Nazareth: Suculento (samba brasileiro, 1919)
As obras do Mallio se assemelham principalmente às da juventude de Nazareth, anteriores a 1893, quando este só compunha polcas, valsas e quadrilhas. Ambos estão imersos em uma linguagem empregada por diversos outros compositores, como Chiquinha Gonzaga (que também foi aluna de Henrique Alves de Mesquita), Antonio Cardoso de Menezes, Alexandre G. de Almeida e até mesmo Carlos Gomes, que compôs diversas peças de caráter ligeiro, publicadas pelas mesmas editoras dos acima citados.
Capa da edição independente do autor, c. 1913
Mallio, assim como Nazareth, utilizava de seu conhecimento de piano erudito (especialmente de Chopin e de peças de salão europeias) para enriquecer o tratamento pianístico de suas peças. Na verdade, o pianismo se destaca muito em Mallio, que por vezes o aproxima mais de Arthur Napoleão e Gottschalk.
Chama também a atenção a “Quadrilha-estudo”, um gênero híbrido talvez inventado por Mallio, em que a peça funcionaria primariamente como estudo pianístico, pois faz amplo uso de oitavas, escalas na mão esquerda, terças paralelas, e arpejos nas duas mãos. É interessante também a quadrilha “Mosquito por cordas” (1883 ou anterior), que faz uso de 12 melodias folclóricas, servindo como um precioso documento do folclore no século XIX.
Porém, Mallio não compôs nenhum tango brasileiro, e nesse sentido as linguagens das obras de ambos passam a divergir a partir da década de 1890. Além disso, diferentemente de Nazareth, sua obra tem algo de patriótico, como vemos em Auri-verde (1894), Deus, Pátria e Liberdade (1891), Hino ao Brasil (1915 ou anterior), e Viva o Brasil (para piano e orquestra) (1910 ou anterior).
Frederico Mallio e Vasco Lourenço da Silva Nazareth
Frederico Mallio (Foto publicada em jornal entre 1916 e 1922) e Vasco Lourenço da Silva Nazareth (1863)
Durante as pesquisas topei por acaso com uma notícia curiosa, de 22 jan de 1887, no jornal O Paiz:
Sumário de culpa instaurado contra Vasco Lourenço da Silva Nazareth? Vasco Lourenço era o pai de Ernesto, e sabemos que era um homem pacato e pai de família respeitado, que trabalhou como despachante na alfândega até pelo menos 1938, quando tinha 95 anos.
Que tipo de acusação poderia haver de Mallio para Vasco Lourenço? A única coisa que podemos assumir é que os dois entraram em contato por intermédio de Nazareth, com quem Mallio tocou em público até pelo menos 1885.
Uma notícia de dois meses depois (25 de março de 1887, Diário de Notícias) fornece uma pequena continuidade:
Aqui vemos uma inversão: é Vasco Lourenço quem chama Mallio para prestar depoimento sobre um assalto que este teria feito à residência daquele.
Uma nova notícia de 30 de outubro de 1887 (jornal Cidade do Rio) esclarece qual o crime imputado a Mallio:
No artigo 209 do Código Criminal do Império, que vigorou de 1830 a 1891, lê-se:
"Art. 209. Entrar na casa alheia de noite, sem consentimento de quem nella morar.
Penas - de prisão por dous a seis mezes, e multa correspondente á metade do tempo.
Não terá porém lugar a pena:
1º No caso de incendio, ou ruina actual da casa, ou das immediatas.
2º No caso de inundação.
3º No caso de ser de dentro pedido soccorro.
4º No caso de se estar alli commettendo algum crime de violencia contra pessoa."
Portanto sabemos que Mallio foi acusado de em algum momento em 1887 entrar na casa de Vasco Lourenço à noite, sem a autorização do mesmo. Isto foi depois do casamento de Ernesto com Theodora em 1886, e portanto só restavam na casa seu pai, Vasco Lourenço (viúvo), e sua irmã Júlia Adélia da Silva Nazareth, apelidada de Dodoca, solteira de 23 anos. Os demais irmãos já tinham se casado ou falecido.
Seria ela o motivo da invasão de Mallio? Teria sido então um erro histórico a informação de que Mallio se apaixonara pela filha de Nazareth, quando na verdade ele poderia ter se apaixonado por sua irmã? É possível que nas histórias contadas ao longo das gerações tenha ocorrido um “efeito telefone sem fio”, transformando “filha” em “irmã”.
Quão inesperado seria um pai de família como Mallio, casado desde 1883 e com uma reputação a zelar, assumir esse risco? Talvez tão possível quanto ele se apaixonar por uma garota 30 anos mais jovem alguns anos depois? A segunda hipótese bate com a cronologia de Marietta Nazareth, nascida em 1892 e portanto adolescente entre 1903 e 1910, época em que Frederico estava viúvo. Porém essa alternativa torna-se menos provável na medida em que consideramos que Frederico Mallio provavelmente tornou-se persona non grata entre os Nazareths.
A matéria de publicada nO Paiz em 1º de março de 1888 afirma que o inquérito seguiu para julgamento:
E uma semana depois vemos que o processo foi anulado por uma falha técnica (O Paiz, 9 de março de 1888):
Porém quatro anos depois vemos a notícia de um novo processo, que não deixa claro se tem relação com o anterior, pois dessa vez o processado é Vicente Pereira Mallio, pai de Frederico, “e outros”. Sabemos apenas que eles apelaram ao juiz (ou seja, depois de terem sido condenados em uma instância anterior) e que um dos embargos é julgado procedente, e outro é julgado improcedente (Diário de Notícias, 6 de fevereiro, 1890):
Três meses depois vemos uma nova notícia informando que os mesmos apelantes tiveram seus embargos desprezados, e que portanto a sentença se manteve (Diário de Notícias: 1º de maio de 1890).
Que sentença seria esta? Seria um processo diferente, ou estaria Frederico utilizando o nome do pai para uma nova instância?
Consta que Vicente Pereira Mallio (1832 - 1892) foi pintor conhecido no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, retratando personalidades importantes da Corte como D. Pedro II, a Princesa Isabel e a Imperatriz Teresa Cristina, obras que integram o acervo do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
Essa história provavelmente permanecerá um mistério e “mal contada” até que se tenha acesso aos autos do processo nº 6.992 julgado pelo desembargador Faria Lemos no Tribunal da Relação da Capital em fevereiro e abril de 1890.
Encontrei pelo menos um vestígio dessa história publicada seis anos depois no jornal Cidade do Rio, que era notoriamente contra Frederico Mallio (6 de dezembro de 1896):
A parábola parece ser uma referência ao caso Nazareth vs. Mallio, posto que o próprio jornal a noticiou anos antes, em 1887.
Talvez por causa disso circulava a informação de que Mallio teria grafado para Nazareth algumas de suas músicas, quando na verdade sabemos que Nazareth escrevia suas próprias músicas desde adolescente, com base nos manuscritos que deixou, chegando inclusive a realizar este serviço para outros compositores amadores, como seu tio Júlio Augusto Pereira da Cunha. Curiosamente, também se dizia que o compositor Antonio Cardoso de Menezes grafava para Nazareth suas peças.
A despeito das polêmicas em que Frederico se envolveu, é inegável sua contribuição para educação musical no Rio de Janeiro do final do século XIX até o primeiro quarto do século XX, tendo formado centenas de alunos e realizado dezenas de recitais que apresentavam música de concerto a um público talvez ainda inexperiente. Suas dezenas de peças também contam um pouco da história do Rio musical e aguardam resgate.
Ouça aqui a música "Deus, Pátria e Liberdade", de Frederico Mallio, em gravação não-comercial pela Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, cujo arranjo de João Pereira da Silva feito em 1893 poder ser acessado na íntegra aqui.
--
Procurei gerar um catálogo completo das peças de Frederico Mallio. A Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional permitiu a identificação de várias peças desconhecidas. Complementaram esta pesquisa o catálogo elaborado por Ignez Rodrigues, e a publicação “The Universal handbook of musical literature. Practical and complete guide to all musical publications “, Volume 12, de Franz Pazdírek (página 105).
Segundo o texto de Hilário de Andrade publicado em 1906 em homenagem a Frederico Mallio, consta que este teria 86 composições publicadas “sendo que as melhores acham-se em manuscritos”. Dessas pude encontrar os títulos de 65 peças, com as respectivas editoras e datas.
Baixe o Catálogo de obras de Frederico Mallio
Agradeço a Ignez Rodrigues, neta de Frederico Mallio, que me forneceu diversos materiais de pesquisa, gravações não-comerciais e partituras, a Luiz Antonio de Almeida pelas discussões esclarecedores, e aos amigos que gentilmente comentaram a primeira versão do texto.
COMENTÁRIOS
Guilherme Goldberg - 05.03.2016
Muito bom!
Olá Alexandre, muito boa a pesquisa realizada. Somente uma correção: o nome do crítico está invertido, é Rodrigues Barbosa. Abraço
clau mallio - 15.11.2013
pesquisou, parabéns pelo trabalho... Pena, não ouviu todas as fontes...
Luiz Carlos Araujo - 09.03.2013
Misterioso
Excelente pesquisa em torno desse personagem, que eu particularmente desconhecia. "Imbroglios" não faltaram, pelos visto, na relação entre Mallio e Nazareth...Rivalidades? Vaidades? Personalidades díspares? O tempo responderá...
Luiz Antonio de Almeida - 05.03.2013
Sensacional !!!
Quando alguém se prontifica a levar uma pesquisa a sério, vez por outra "tropeça" em fatos que o correr do tempo tentou apagar... Sim, o passado pode nos condenar. Mas a pesquisa está ai, o compromisso com a verdade tem que ser mantido a qualquer preço. Como poderemos entender os gênios de outrora sem conhecer seus segredos, suas fraquezas, suas falhas? Esse artigo do Alexandre Dias trouxe à "vida" um dos mais importantes personagens da música clássica brasileira. Polêmico, empreendedor, amado, odiado... Como seria maravilhoso se, nos tempos de hoje, nossa música pudesse contar com uma figura da dimensão de Frederico Mallio... Amigo Alexandre Dias, gratíssimo por seu trabalho sensacional !!!