NAZARETH (DE)CIFRADO!

Alexandre Dias 20.04.2013

Neste post estamos lançando o álbum “Ernesto Nazareth 150 Anos – Melodia & Cifra Vol.1”, com 60 adaptações para melodia + cifra de músicas de Nazareth. O arquivo para download encontra-se no final do texto.

Quem já estudou violão ou teclado sabe o que são cifras: um sistema codificado para representar acordes musicais.

Em vez de se escrever um acorde nota por nota em uma pauta musical, utiliza-se uma abreviação prática. Por exemplo, o acorde de dó maior com sétima maior, ilustrado abaixo na notação em pauta, pode ser representado de maneira muito prática como C7M

   =   C7M

Dessa forma o músico pode extrair a informação harmônica de uma peça rapidamente, enquanto lê a melodia, esta sim escrita com todas as notas na pauta musical.

Fazem parte do “vocabulário” comum cifras como A7, Dm, Cdim e Em7(b5).

Este sistema é utilizado por músicos populares do mundo inteiro, desde o jazz até a bossa nova, samba e choro.

Hoje sabemos que as cifras são utilizadas em publicações como os famosos fakebooks e songbooks, mas como e quando elas surgiram?

Os livros de história da música costumam fazer referência ao baixo cifrado, um outro sistema de abreviações de acordes, que era amplamente utilizado no período barroco, porém é impressionante a escassez de referências sobre a história das cifras modernas, tanto no Brasil como no mundo.

O trabalho mais aprofundado que encontrei sobre este tema é o artigo “Harmonia funcional, arranjos e a velha condução de vozes”, de Antonio Guerreiro de Faria. Lá o autor expõe que a referência mais antiga encontrada fazendo uso de cifras é a publicação “Arranging for the modern dance orchestra” (1927), de Arthur Lange  com arranjos para orquestras de baile, em que a parte do banjo tenor é representada tanto com notas na pauta como com cifras.

Guerreiro argumenta: “pode-se suspeitar de que essas cifras simples se constituíssem na forma de escrita para banjo, que certamente não era instrumento da elite americana, sendo plausível que a maioria de seus executantes não pudessem ter acesso ao ensino regular de teoria musical”. E sugere: “com o advento do rock, bossa, Beatles, Jovem Guarda, pop, soul, e o que mais pudesse ser tocado ao violão, instrumento portátil por natureza e perfeitamente adequado ao acompanhamento de canções, é possível supor que os chord symbols [cifras] tenham tomado o lugar do pentagrama nos chamados arranjos de base”.

Até a década de 1940, é comum encontrarmos partituras no Brasil contendo apenas a melodia, sem nenhuma informação harmônica. É o caso do álbum “Alma Brasileira”, com 30 choros de Chiquinha Gonzaga, publicado em 1932 em edição independente e dos álbuns “6 choros para saxofone ou clarinete (arranj. Lyrio Panicali)” e “6 choros para saxofone ou clarinete (arranj. J. C. Rondon)”, ambos publicados pela Irmãos Vitale em 1940.

Aguará, valsa de Chiquinha Gonzaga publicada na coletânea Alma Brasileira, 1932.

Este é o caso também de diversas músicas publicadas no século XIX que só continham a melodia da flauta, como algumas publicações e cópias manuscritas de Joaquim Callado e Pixinguinha.

Esta notação ambígua, que deixa a harmonia em aberto para cada músico decidir, pode soar surpreendente, mas a lógica subjacente é que apenas os solistas (p. ex. flautistas e trompetistas) sabiam ler partitura, enquanto que os acompanhadores (p. ex. violonistas e cavaquinistas) tocavam de ouvido. Baden Powell (1937-2000) ratifica isto, ao afirmar sobre as rodas de choro na casa de Meira (1909-1982), seu professor: “E era assim, uma mesa redonda, quer dizer, não tinha aquele negócio como tem hoje, de escrever cifra. Era assim: ‘dá um dó maior aí’. E você tinha que sair acompanhando. Se errasse, você não era bom. [...]” (depoimento presente no verbete “Baden Powell”, da Enciclopédia Músicos do Brasil)

A partir da década de 1940, no Brasil começa a ser utilizado um sistema de cifras, a que Silvio Merhy, no artigo “A Leitura e Interpretação de Cifras Alfabéticas no Teclado”, se refere como “cifras silábicas”. Neste sistema, que é bastante diferente do utilizado hoje, em vez de se escrever uma cifra abreviada do próprio acorde (como por exemplo “C” para “dó maior”), escrevia-se uma designação vinculada à função harmônica, como por exemplo “1ª de dó” e “2ª de mi” (em que 1ª é o próprio acorde, e  2ª é o V grau do respectivo acorde). Portanto uma sequência em dó maior, que hoje seria cifrada como “C - A7 - Dm - C7 - F - G7” ficaria “1ª de dó - 2ª de ré - 1ª de ré m - 2ª de fá - 1ª de fá - 2ª de dó”, exigindo um grande raciocínio e consciência das funções harmônicas por parte do intérprete.

As cifras silábicas estão presentes em métodos como o “Pagé”, de Montemor Junior, publicado em 1938, e no histórico “Álbum de Choros de Pixinguinha e Benedito Lacerda”, publicado pela Irmãos Vitale em 1947.

Um a Zero, choro de Pixinguinha publicado pela Irmãos Vitale em 1947, utiliando cifras silábicas sobre a pauta.

Em 1961, vemos ainda este sistema presente no “Método de Violão”, de Fernando Azevedo e, segundo o flautista e pesquisador Leonardo Miranda, o violonista César Faria (1919-2007) continuou utilizando este sistema até tempos recentes, havendo ainda hoje músicos que utilizam este tipo de cifra.

Mas quando teriam surgido as cifras americanas (também chamadas de “alfabéticas” ou “anglo-saxônicas”) no Brasil?

Guerreiro fornece uma importante informação: “as cifras parecem ter sido introduzidas no Brasil na década de 1930 por Radamés Gnattali, segundo Guerra-Peixe, em depoimento informal ao autor deste estudo. (...) Os arranjos entregues pelos arranjadores das emissoras de rádio durante a era do rádio eram copiados no mesmo dia, e levados ao ar horas depois pelas orquestras, ao vivo e sem ensaio. Dessa forma, o tempo empregado para copiar as partes à mão era sensivelmente reduzido quando a cifra americana era usada”.

De fato, Radamés escreveu centenas de arranjos para programas de rádio, desde a década de 30 (e na verdade havia pelo menos um ensaio, na parte da tarde). Roberto Gnattali afirma que as cifras americanas estão presentes na obra de Radamés possivelmente a partir de 1940, por influência do jazz.

O que podemos afirmar de fato é que em 1951 as cifras americanas foram utilizadas na coletânea “Quinze Choros de Garoto”, impressa pela Fermata do Brasil em 1951, segundo informação de Celso Tenório Delneri.

Exemplo do álbum “Quinze Choros de Garoto” (Fermata do Brasil, 1951), extraído da dissertação de mestrado “O Violão de Garoto”, de Celso Tenório Delneri (2009, USP)

Segundo o pesquisador Jorge Mello, o violonista e guitarrista Edhir Izzi Lins, mais conhecido como Bandeirante, passou a desenvolver a partir de 1943 um método para o ensino de violão, que utilizaria cifras americanas.  Suas primeiras publicações didáticas são da década de 1950 e incluem “ABC do Violão” (1955, que já apresenta cifras), “Teoria, cifras e violão, acordeon, piano” (1957, dedicado a Garoto, que era seu amigo) e outros como “Harmonilandia”, “Ritmolandia” e “Cifrasolo”.

Estes métodos do Bandeirante foram a bases de muitos músicos, e são lembrados por Gilberto Gil, por exemplo, neste depoimento.

O compositor Garoto, que também publicou seus próprios métodos para violão tenor, bandolim e banjo, como os cadernos de música “Tupan”, “Bandeirantes” e “Cacique” (Irmãos Vitale, 1943), curiosamente não emprega cifras em nenhum deles.

É comum também encontrarmos publicações brasileiras que utilizavam cifras escritas em português, como “Dó, Ré m e Mi 7”, como podemos encontrar em alguns álbuns de Mário Mascarenhas publicados na década de 1960 e em métodos para órgão.

Porém, Merhy afirma que “o código baseado na notação alfabética [p. ex. F, G7, Dm], de origem anglo-saxônica, acabou predominando no Brasil e se incorporou completamente às práticas de música popular, apesar de persistente polêmica”.

Ian Guest, professor de harmonia de diversas gerações de músicos, é um personagem-chave na sistematização de cifras no Brasil.

Ele foi professor do violonista e produtor musical Almir Chediak, que fundou a Lumiar Discos & Editora, principal editora de songbooks cifrados no Brasil, tendo produzido dezenas de títulos que contaram com o trabalho expert de Ricardo Gilly (entrevista de Gilly a Daniella Thompson)

Em 1984, Chediak publicou o Dicionário de Acordes Cifrados (Irmãos Vitale), com revisão e prefácio de Ian Guest. Esta publicação foi, segundo a descrição contida no prefácio, “uma tentativa de racionalizar e uniformizar o sistema de cifragem”.

Segundo Merhy, “no livro, a argumentação a favor das cifras alfabéticas expressou a necessidade de sistematizar e organizar o código de cifragem, respeitando os conceitos fundamentais da harmonia vocal e das funções tonais. Chediak percorreu o meio musical carioca e pediu a músicos e professores apoio para a ideia de uniformização. Vários professores do Instituto Villa-Lobos prometeram adesão por considerarem que o código proposto não diferia muito de outros já praticados. Nos anos seguintes à publicação do Dicionário, Chediak empreendeu o projeto de editar e publicar songbooks, coletâneas de canções cifradas transcritas de gravações. Uma equipe chefiada por ele digitou transcrições usando o sistema de codificação proposto no livro, o qual foi rapidamente apropriado e reforçado pela popularidade que os songbooks adquiriram no meio musical”.

Atualmente novos songbooks têm enriquecido o mercado, e reforçado a linguagem das cifras no choro, como os Cadernos de Choro da Acari, os songbooks da Choro Music, o álbum Pixinguinha – Inéditas e Redescobertas do Instituto Moreira Salles e Imprensa Oficial, os Cadernos de Composições de Jacob do Bandolim da Irmãos Vitale, além das partituras amplamente trabalhadas na Escola Portátil de Música.

E hoje estamos anunciando a reunião de 60 adaptações em formato melodia + cifra de músicas de Ernesto Nazareth, feitas especialmente para o site EN150 por Paulo Aragão e Marcilio Lopes! Em breve outras 60 virão.

A partir da partitura no formato melodia + cifras, é possível fazer arranjos para diversas outras formações, permitindo uma rápida assimilação pela linguagem dos grupos de choro. A informação básica está exposta de forma clara, e o que pode parecer uma simplificação à primeira vista trata-se na verdade da tradução para uma outra linguagem, que abre muitas possibilidades para a música.

Neste primeiro volume, além de sucessos como Odeon, Brejeiro e Apanhei-te cavaquinho, constam diversas músicas de Nazareth que ainda permanecem restritas ao universo dos pianistas, como Duvidoso, Sagaz e Vitorioso, e que agora poderão ser tocadas por regionais de choro. 

Além disso há músicas raras, pouco tocadas em geral, como A Bela Melusina, Arrojado, Furinga e 1922.

Abaixo vemos um exemplo da música Duvidoso na partitura original para piano solo, e em seguida da tradução para o formato melodia + cifras.


 

Clique aqui para baixar o álbum Ernesto Nazareth 150 Anos – Melodia & Cifra Vol.1.

O violonista, compositor e arranjador Paulo Aragão esclarece alguns detalhes sobre o processo de elaboração das cifras:

“Mesmo considerando a excelência de sua escrita pianística, de uma forma geral a música de Nazareth soa com muita naturalidade em formações instrumentais populares. Não custa lembrar que desde o início do século XX os músicos populares sempre abraçaram a música de Nazareth com muita intensidade.  

O objetivo da elaboração deste conjunto de partituras no formato ‘melodia e cifra’ é fazer com que sua obra esteja ao alcance do maior número de instrumentistas possível.

As harmonizações seguem rigorosamente a escrita de Nazareth, privilegiando seus principais contracantos e suas linhas de baixos. As melodias foram rigorosamente transcritas, sendo usado o recurso de transposição de oitava somente em casos extremos, de forma a tornar exequíveis em outros instrumentos com tessitura não tão ampla quanto a do piano. Mesmo nesses casos, a transposição de oitava foi realizada de maneira a soar o mais natural possível.

Algumas tonalidades mais pianísticas foram ajustadas para outras mais comuns dentro da prática da roda de choro.

Ao lado de alguns clássicos, encontram-se músicas menos conhecidas e que enriquecerão o repertório dos conjuntos de choro da atualidade. Este primeira leva tem 60 músicas, em breve serão publicadas mais 60 adaptações.”

Bia Paes Leme, coordenadora de música do Instituto Moreira Salles e professora de harmonia na Escola Portátil de Música ressalta a importância didática deste material:

“A redução da partitura pianística para o formato melodia/cifra permite uma visualização mais imediata dos procedimentos harmônicos praticados pelo compositor, convertendo-se em utilíssimo material didático. Além disso, por trazerem preservadas as linhas de baixo e diversos contracantos, essas partituras permitem ir além dos limites do ensino da harmonia funcional, apontando o caminho da condução de vozes e da escrita contrapontística”.

Desejamos que com este volume, e os próximos que surgirão em breve, os músicos de choro tenham acesso a um novo baú de tesouros nazarethianos!

Agradecimentos: Bia Paes Leme, Fabiano Borges, Jorge Mello, Leonardo Miranda, Marcílio Lopes, Paulo Aragão, Pedro Aragão, Ricardo Gilly e Roberto Gnattali, que muito contribuíram para as discussões durante a elaboração deste texto e compartilharam informações preciosas sobre publicações antigas.

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COMENTÁRIOS

Jorge Cardoso - 19.10.2013

Álbum Ernesto Nazareth 150 Anos – Melodia & Cifra Vol.1.

Caro amigo Alexandre, Muito obrigado pelo excelente trabalho e pelo álbum Ernesto Nazareth 150 Anos – Melodia & Cifra Vol.1, uma maravilha para que possamos tocar cada vez mais o nosso grande Ernesto Nazareth. Forte abraço do amigo e todo sucesso cada vez mais.

Luis Carlo Sierpin - 21.08.2013

Próximo volume

Olá, quando sairá o próximo volume?

Renato Vasconcellos - 19.05.2013

Belíssimo trabalho Alexandre. Há muito tempo eu venho buscando informações sobre a história da partitura cifrada no Brasil e nos EUA, que constitui um dos assuntos da minha tese de Doutorado em curso. Suas referências são de valor inestimável para mim. Obrigado!! Renato Vasconcellos

Rodrigo Alzuguir - 18.05.2013

Muito bom!

Alexandre, seus artigos são sempre super informativos e embasados - além disso, são ótimos de ler. Parabéns!

Eiliko Flores - 30.04.2013

Artigo e trabalho precioso

Parabéns Alexandre, que trabalho precioso, inestimável para a divulgação de Nazareth. Verdadeiramente impressionante a qualidade de seus artigos, que merecem sair em livro. Abraços!

Bisdré Santos - 26.04.2013

Notável

Um trabalho incrível e precedido por um texto extremamente explicativo, além de ser uma aula de história. Só podemos agradecer. Continuem, que Nazareth merece. Um abraço

Toninho - 23.04.2013

Trabalho precioso

Informações interessantíssimas e um trabalho musical acurado, que, como o autor do texto explica, leva em conta a escrita pianística do autor, com transcrição que favorece a execução de todo um tesouro musical nazaretiano por instrumentistas de choro e outros. Parabéns por esse importante trabalho de divulgação da obra de um dos principais gênios da música brasileira. Toninho

Patricia - 23.04.2013

aulas de cifras

nossa isso tudo pra mim q to começando ta perfeito.. muito bom!! valeu galera.

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