“AVE MARIA” DE ERNESTO NAZARETH É DESCOBERTA! (E OUTRAS NOVIDADES)

Alexandre Dias 20.03.2017

Hoje, dia 20 de março de 2017, comemoram-se os 154 anos de Ernesto Nazareth, um dos pais do choro, e do piano brasileiro. Seu catálogo de obras foi estabelecido pela primeira vez em 1963 pela grande musicóloga Mercedes Reis Pequeno (acesse-o aqui), depois de algumas listagens informais, incluindo as que Nazareth fez do próprio punho. Desde então, este catálogo tem sido trabalhado e refinado por gerações de pesquisadores, o que torna Ernesto Nazareth dos compositores mais pesquisados no Brasil.

Porém isto não impede que ainda haja vários mistérios a serem desvendados em sua obra. Um exemplo é a polca “As gracinhas de nhonhô”, listada no catálogo de 1963 como “peça desaparecida”. Ela foi listada pela primeira vez no “Manuel universel de la littérature musicale”, publicado por Pazdirek & Co. em Viena, por volta de 1905, e sabe-se que foi publicada pelo editor Manoel Antônio Guimarães no Rio de Janeiro. Fora isto, não se sabe mais nada sobre esta peça, e até hoje estamos procurando por um exemplar que tenha sobrevivido ao tempo (infelizmente, ainda há obras desaparecidas no catálogo da grande maioria dos compositores brasileiros).


Trecho do “Manuel universel de la littérature musicale” (Pazdirek & Co, Viena, ca. 1905), p. 51 do Tomo I, Vol.22.

Há algum tempo, a Biblioteca Nacional disponibilizou em sua plataforma digital diversos manuscritos autógrafos de Ernesto Nazareth presentes em seu acervo, e desde 2014 declarados Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Para acessá-los, entre neste link, digite "Ernesto Nazareth" na busca combinada e escolha "Partitura" como tipo de material.

Em 2017, fizemos uma linkagem com cada um destes manuscritos nas respectivas páginas de cada obra do Nazareth (confira aqui).

Embora já conhecêssemos os preciosos manuscritos da BN desde pelo menos 2001, quando obtivemos fotocópias de todos que estavam disponíveis na época, com esta nova checagem, nos deparamos com alguns manuscritos e trechos de manuscritos que ainda não conhecíamos. E com estas páginas novas, apareceram informações importantes inéditas, como por exemplo as letras que Maria Mercedes Mendes Teixeira fez para a “Saudação ao Dr. Carneiro Leão” e para o “Hino ao Sr. Prefeito Alaor Prata”, até então consideradas desaparecidas (veja as últimas páginas dos pdfs aqui e aqui). Também apareceram dedicatórias diferentes em duas peças: Pauliceia como és formosa “Dedicada ao distincto e bom amigo José B. Abreu”, o que exclui a possibilidade de esta peça ter sido dedicada ao Zequinha de Abreu, como já foi cogitado, pois seu nome do meio era “Gomes’’; e uma dedicatória até então desconhecida do tango brasileiro “Insuperável”, "ao colega (?) Cardoso de Menezes", provavelmente Antonio Cardoso de Menezes, que dedicou uma música a Nazareth, e que era avô da pianista Carolina Cardoso de Menezes. E apareceu uma possível ligação com o compositor João Pernambuco – em uma pequena lista de quatro obras de Nazareth, com os respectivos dedicatários, consta um choro não nomeado, “ao Pernambuco”, que precisa ser melhor investigado.

Tango  S. Paulo, como és formoso!...   (Ao Abreu)
    "      Desengonçado                        (Ao Camaz)
    "      Choro -                                   (Ao Pernambuco)
    "      Até que enfim                          (Ao Avelino)


Trecho do manuscrito do fox-trot Little Boy, de Ernesto Nazareth Filho, grafado por Ernesto Nazareth.

No crescendo de surpresas que estes novos manuscritos nos revelaram, apareceu também uma parte B alternativa para o fox-trot If I am not mistaken, essencialmente com a mesma ideia e estrutura da versão final que foi publicada, porém pianisticamente mais ousada. Ouçam aqui o arquivo midi desta parte.


Trecho riscado da parte B do manuscrito autógrafo do fox-trot If I am not mistaken

Porém a maior novidade que veio à tona nesta investigação dos manuscritos de Ernesto Nazareth na Biblioteca Nacional foi o manuscrito autógrafo da polca-tango Cuéra, que apresenta incrustrada em seu centro uma pequena peça de 32 compassos em 3/4, sem título, marcada com as indicações “Doloroso” e “molto moderato” (ver páginas 10 e 11 do pdf aqui). Nazareth costumava fazer isto: aproveitava uma mesma folha pautada para escrever mais de uma peça, às vezes uma sobreposta à outra. Isto nos pareceu ser um esboço de uma obra inacabada, apresentando uma linha do canto (sem a letra) sobre a pauta do piano. Porém, analisando o trecho em mais detalhe, percebemos que não se tratava de nenhuma música conhecida de Nazareth, e, embora curta, era uma peça completa, com começo, meio e fim. A confirmação disto veio nos últimos compassos da linha do canto, que apresentavam o final da letra “pecadores agora e na hora de nossa morte” – o final da oração da Ave Maria! Fazendo-se o caminho inverso, foi possível encaixar toda a letra à parte do canto.

No entanto, não podemos dizer que a peça esteja 100% terminada, pois, durante quatro compassos no final, a mão esquerda do piano fica parada no acorde de Si maior, com a direita replicando a linha do canto, algo que não é compatível com a criatividade que Nazareth. É como se estes compassos tivessem sido apenas esboçados, para que se completasse depois, algo que nunca aconteceu. Porém o restante da peça apresenta uma escrita robusta, e original, inclusive com uma interessante modulação de Fá# maior para Si maior a partir do compasso 16.


Trecho inicial do manuscrito da Ave Maria, recém-descoberta, atribuída a Ernesto Nazareth

Seria este pequeno esboço uma música inédita de Ernesto Nazareth, que passou despercebida por todos até 2017? Ao que tudo indica, sim.
Os argumentos a favor da autoria de Nazareth são os seguintes:

1) A grafia é claramente de Ernesto Nazareth. Tanto a caligrafia musical quanto a verbal batem com os diversos manuscritos autógrafos que já conhecemos.

2) Ao que tudo indica, esta não é uma cópia de uma partitura já existente em outro meio. Há sinais de que a música estava sendo composta na medida em que era grafada neste papel, pois 1) há uma hesitação entre a tonalidade de Sol bemol maior (na linha do canto) e Fá# maior (na parte do piano); e 2) há vários compassos riscados na linha do canto (não no piano), indicando que se optou pela tonalidade de Fá# maior.

3) A linguagem harmônica utilizada é compatível com a linguagem nazarethiana, fazendo uso de procedimentos que ele adotou em outras de suas obras "eruditas", como a meditação “Mágoas”. Chamam também a atenção as indicações "doloroso", "molto moderato", "molto sentito", "lento" e "perdendosi", além dos vários sinais de dinâmica (pp, mf, cresc, f), que Nazareth costumava utilizar com frequência em suas composições.

Fizemos uma busca por outras “Ave Marias” da época de Ernesto Nazareth (ou próximas), e, dentre as 20 analisadas, nenhuma se assemelha ao manuscrito encontrado.

Albuquerque, Alfredo - Sino da aldeia (Ave Maria)
Anônimo - Ave Maria (Na hora em que se cobre) (harmonização de Amelia de Mesquita, op.23)
Anônimo (Minas Gerais, séc. XIX) - Ave Maria
Araújo, João Gomes de - Ave Maria
Barreto, Homero - Ave Maria
Benedictis, Emilia de - Ave Maria
Campos, Erothides de - Ave Maria
Ferreira, Domingos Joze - Ave Maria (Op. 30)
Fonseca, José Agostinho da - Ave, Maria!
Gallet, Luciano - Ave Maria
Gomes, Carlos - Ave Maria
Aricó Júnior e Corrêa Júnior - Ave Maria
Marieta Netto - Ave Maria
Milanez, Abdon - Ave Maria
Paiva, Vicente e Redondo, Jayme - Ave Maria
Reis, Julio - Ave Maria
Somma, Bonaventura - Ave Maria (Arr. Savino de Benedictis)
Velasquez, Glauco - 1ª Ave Maria
Velasquez, Glauco - 2ª Ave Maria
Velasquez, Glauco - 3ª Ave Maria


Abaixo apresentamos a primeira edição desta Ave Maria, cuja autoria atribuímos a Ernesto Nazareth.

Baixar o PDF.

A soprano Denise Tavares e a pianista Marília de Alexandria realizaram a 1ª gravação mundial desta peça, especialmente para o site EN150. Somos imensamente gratos a ambas, e a Fernando Sanglard, que realizou a filmagem e gravação do áudio. A editoração da partitura é de Douglas Passoni de Oliveira, e a revisão, de Alexandre Dias.

Atualização: no dia 20/03/2017 O Globo publicou uma matéria escrita por Helena Aragão, divulgando esta descoberta, com o título "Pesquisador divulga obra inédita de Ernesto Nazareth".

TAGS Obras

COMENTÁRIOS

Rogério Dias - 21.03.2017

Uau! FANTÁSTICO!!! Linda composição, brilhante pesquisa e excelente interpretação. Parabéns Ernesto, Alexandre, Denise e Marília.

Mauro Chantal - 20.03.2017

Nazareth e os pesquisadores

Bravíssimo aos pesquisadores pelo excelente trabalho sobre a obra de Ernesto Nazareth. Viva a música brasileira!

Mais uma competente descoberta! Parabéns! - 20.03.2017

AMÉM

Muito bom trabalho de investigação, como sempre! Isso traz à luz um aspecto pouco comum na obra nazarethiana...

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