UMA CARTA ESPECIAL

Alexandre Dias 20.03.2012

Olá a todos!

Para o segundo post do site trouxemos um documento muito especial, que permaneceu inédito por 36 anos. Trata-se de uma carta enviada ao pianista Aloysio de Alencar Pinto, por seu amigo Célio Monteiro, que revela diversas informações importantes sobre Nazareth, sendo a mais curiosa o fato de que Nazareth e Machado de Assis se conheceram.

No próximo post faremos uma breve análise sobre a carta.

Abraços,

Alexandre Dias

 

Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1976  *

Prezado e Ilustre Amigo

Prof. Aloysio de Alencar Pinto

            Recorro apenas à lembrança para levar a V. as achegas sobre Ernesto Nazareth, tal como as ouvia de minha MÃE e de parentes, todos já falecidos. Assim, a cronologia exata, torna-se impossível. Ficarão apenas os fatos.

            Minha avó paterna, exímia pianista, uma das primeiras damas brasileiras a poder ostentar o título de Maestrina, estudou aqui no Rio e na Europa. Morava numa casa apalacetada na então Rua Mata Cavalos (hoje Riachuelo) onde recebia todos os grandes vultos da música vindos à Corte, bem como homens de letras, em  saraus, ora dançantes, ora literários.

            Lá ia, não sei a que mister doméstico, uma senhora que era tratada por um apelido carinhoso do qual não me recordo. Era a mãe de Ernesto Nazareth. Geralmente, levava o  filho a quem dedicava muito carinho. A criança era arredia e tímida, de poucas falas. Agradava a minha Avó paterna tal visita, pois tocava com ela a dois pianos ou a quatro mãos. Ouvi ser sua opinião de que a mãe de Nazareth deveria ensinar-lhe piano, pois o menino, quando vencia a timidez habitual, já tocava, aos sete ou oito anos, algumas peças ao piano, as quais lhe eram ensinadas pela mãe, pois o pai de Nazareth se opunha a que ele fosse músico, ou mesmo “perdesse tempo” em estudar piano. Essa era a resposta que minha Avó recebia sempre que estimulava tal ensino ao garoto.

            Passou-se o tempo, e ainda em dias do século passado, certa vez, minha avó, decidindo dar um baile, contratou uma pequena orquestra, como era costume então nas famílias abastadas. O pianista que compareceu, substituía um outro de grande voga, então, mas impossibilitado por doença. Depois de ouvi-lo tocar, minha Avó chegou-se a ele e indagou seu nome. Foi quando, com a timidez habitual, o pianista (e não pianeiro...) identificou-se como o filho daquela senhora, que há anos passados costumava freqüentar a casa de minha Avó e com ela tocar: - era Ernesto Nazareth.

            Daí em diante, sempre foi ele contratado para ser o pianista, seja nos bailes, seja nos saraus literários.

            A tais saraus comparecia um senhor taciturno, também muito tímido e circunspecto, mas altamente distinguido por minha Avó: - chamava-se MACHADO DE ASSIS. Ia ouvir a recitação de seus versos (de que hoje quase ninguém fala) ao som da indefectível – Dalila – ou sei lá se outra glicerina musical. O fato é que – e isso me parece muito importante- sempre que podia, achegava-se ao pianista Ernesto Nazareth e pedia-lhe: Senhor Nazareth, toque-nos qualquer composição de Schumann002E (Isso mesmo Aloysio – pedia Schumann, quando o corriqueiro naquele fim de século eram as insuportáveis transcrições operísticas, das quais nem mesmo o grande Liszt se livrou...). E para desfazer a sandice dos que acoimam Nazareth de “pianeiro” o grande MACHADO DE ASSIS era atendido.

            Depois me vem outra lembrança: - Isaura, uma tia-avó por parte de minha Mãe, que foi ALUNA de NAZARETH. Essa Senhora, também muito viajada, e portanto com poder de crítica e escolha, tomava aulas com o “pianeiro”. Apenas o repertório já eram obras de Bach, Mozart, Haydn, Beethoven, Chopin (o grande ídolo de Nazareth, segundo suas próprias declarações), Schumann, Grieg (quem conhecia Grieg naquele tempo no Rio?...), etc, etc.

            Essa minha tia-avó morava no Campo de São Cristóvão, perto da casa de meu tio-avô, o Comendador Vianna, casado com uma tia de minha Mãe. Este Senhor, muito abastado, tinha por “hobby” ser organizador de elencos teatrais amadorísticos, os quais representavam no então elegantíssimo CLUBE IMPERIAL DE SÃO CRISTÓVAM, metros adiante de sua casa, do lado do atual Colégio Pedro II, e, de onde menino, eu via das sacadas do segundo andar, os desfiles de tropa, e, em 1922 a recepção ao Rei Alberto da Bélgica e sua Rainha.

            Tocava nessas festas Ernesto Nazareth, o qual ficou sendo uma espécie de Kapellmeister da Família, ou melhor, das Famílias de meu Pai e minha Mãe. Normalmente, diziam que ganhava 20$000 por noite... Todavia minha gente parece ter a decência de gratificá-lo melhor, haja vista a solicitude coma qual sempre correspondia aos convites. Com aquela minha tia Isaura – sua aluna – tocou muito a quatro mãos , sendo diversas ouvido por Arthur Napoleão, e os Vianna da Motta – pianista e violinista – que freqüentavam a casa do Comendador Vianna sempre que vinham ao Brasil. Já se vê não poder se tratar de um “pianeiro”, quem executava Schubert, Brahms (!), Mozart e até um  concerto de Gottschalk, que o reduziu para piano solista e acompanhamento.

            Tanto era excelente sua execução que Mamãe sempre contava o fato do Maestro Arthur Napoleão perguntar ao Nazareth: - Ó Nazareth, por que não escreves tuas composições como as executas? Ao que respondia o sempre tristonho e tímido artista: - Maestro, para não morrer de fome. Imagine o Senhor: - se escrevendo o mais fácil possível para a mão esquerda ainda acham minha música difícil, se escrever como toco, ninguém vai comprar minhas composições.

            Apesar de se saber que Nazareth nunca teve tendência para compor outra espécie de música que não fosse a pianística, dou meu depoimento, o qual acho bem importante: - recebi de minha Mãe, um livro encadernado em tafetá vermelho, no qual o Comendador Vianna, com uma caligrafia maravilhosa, copiou umas cinco ou seis canções, compostas por Nazareth, para servir às representações dos amadores que se apresentavam, sob a direção de meu tio-avô, no Clube de São Cristóvão. Infelizmente, esse volume seguiu com todas as músicas de piano que tinha para outras mãos. Com ele foi uma coleção quase completa, a meu ver, das músicas de Nazareth, quase todas autografadas e com dedicatórias a diversos membros de minha Família.

            No momento é só o que me ocorre, da tradição familiar. Todos os que conviveram com aquele grande músico, partiram também. Assim, não tenho mais a quem recorrer para investigar mais fatos interessantes. Tenho a impressão de um dia recordar mais alguma coisa. Então transmiti-la-ei, com o mesmo empenho posto nestas notas, pelo muito de afeto que lhe dedica o

(assinatura de Célio Monteiro)

O indefectível P.S.: -

1º - Lembro-me de haver ouvido  as músicas de Nazareth para as tais cançonetas do Clube de Amadores Teatrais: - não lhe faziam honra... Eram fracas.

2º - Sempre que Machado de Assis começava a ouvir Schumann, cruzava as pernas e punha-se a sacudir o pé. Não no compasso da música, mas a indicar uma emoção raramente nele exibida.

3º - Nazareth não gostava de tocar com conjuntos populares. Delicadamente recusava-se a tocar com instrumentos de sopro, no que mais ou menos podemos chamar de “charanga” ou “chorinhos”. Em casa de minha Avó, ou nos outros salões, pelo menos, em nossa tradição, só tocava música refinada, ou suas produções (talvez só as valsas) com o concurso de cordas (arcos). Acompanhava também cantores em trechos de ópera ou cavatinas sem qualquer sabor popularesco. Sempre afirmou tocar para dançar para ganhar a vida, mas não por gosto.

[* carta pertencente ao acervo de Georges Pinto, filho de Aloysio de Alencar Pinto, e gentilmente cedida para este site. Todos os grifos são do autor da carta]

Clique aqui para baixar a imagem original da carta.

 

 

TAGS História

COMENTÁRIOS

Rodrigo Alzuguir - 13.02.2013

Carta que vale ouro

Alexandre, que maravilha entrar em contato com essas recordações do Célio Monteiro. Tanta memória se perdeu por não terem sido passadas para o papel, como ele fez. Obrigado por divulgar esse material! Abção Rodrigo

Giovanni Sagaz - 13.02.2013

Ele facilitava as partituras.

Sempre achei que Ernesto facilitava a escrita das composições para poderem ser vendidas, agora tem um prova disso: essa carta!

COMENTAR