‘CARDOSINA’, A VALSA HOMEOPÁTICA DE ERNESTO NAZARETH

Pedro Paulo Malta 15.03.2019

Entre as histórias que estão por trás das músicas de Ernesto Nazareth, uma das mais curiosas é a da valsa “Cardosina”: composição inspirada não em uma musa, mas num... xarope. Isso em 1905, quando o pianista atendeu à encomenda do farmacêutico homeopata José Pinto Duarte, que desejava enviar a valsa como um brinde aos clientes de seu negócio, o “Laboratorio e Pharmacia Homœpathica Almeida Cardoso & Cia”. A proposta do brinde não passou da ideia e a gaveta foi o destino da partitura, com dedicatória e tudo: “offerecida por Almeida Cardoso & Cia. a seus distinctos freguezes e amigos”.

Correio da Manhã, 30/10/1907 / Reprodução: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Segundo o biógrafo de Nazareth, Luiz Antonio de Almeida, o serviço foi devidamente pago pelo farmacêutico, que era amigo do compositor e socorrista frequente de seus problemas financeiros. “Uma das histórias correntes na família é a de que Nazareth era frequentador da farmácia e casa do meu bisavô, onde costumava tocar piano”, conta Raul Crespo, 60 anos, bisneto de José Pinto Duarte e ouvinte atento das histórias que lhe contava a tia-avó Anna Cardoso Duarte Gallo (1909-2006), a Annita, filha caçula do empresário. “Ela dizia que, mesmo após a morte de Nazareth, meu bisavô continuou ajudando a família.”

Ernesto Nazareth frequentava a farmácia Almeida Cardoso desde os primeiros anos do século 20, na Rua Visconde de Inhaúma, nº 29, no Centro do Rio. De lá, o estabelecimento se mudou para ali perto, na Rua Marechal Floriano (antiga Rua Larga), funcionando primeiro no nº 5-A e depois no número 11, onde permaneceu por quase sete décadas. Endereços que estão nos diversos anúncios da Almeida Cardoso estampados nos jornais da época: fosse pedindo aos clientes que tivessem cuidado com as falsificações, fosse listando os diversos medicamentos do laboratório, entre eles a Cardosina, para “bronchites, tosse asthmatica e secca, corysa, resfriamentos, influenza, dores no peito, costas e dos lados”.

Revista Fon Fon, 12/10/1912 / Reprodução: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Outros produtos “a preços rasoáveis” são apresentados nas peças publicitárias, como o Vitalinum (“Restabelece a potência viril aos dois sexos”), o Sanacallos (“Faz cair os callos sem incômodo”), o Carduus Cardo (“Cura moléstias do coração e hemorrhoidas fluentes”) e a Albíngia (“Pó dentrifício: o melhor para limpar os dentes”), entre outros. Esse último também deu nome a uma composição de Ernesto Nazareth, como se pode ler numa nota de Annita publicada no jornal O Globo (1976) e reproduzida aqui. A nota termina com a revelação da existência da valsa “Cardosina”, cuja partitura foi entregue em seguida à pianista Maria Alice Saraiva (1913-2001), permanecendo inédita até 2008, quando foi então publicada no portal Música Brasilis.

A Homeopatia Almeida Cardoso seguiu em plena atividade até o ano de 2013, quando um incêndio destruiu o imóvel em que funcionava, na Rua Alexandre Mackenzie, também no Centro do Rio. Uma fatalidade que destruiu não só o laboratório, como o acervo que contava a história do empreendimento, entre fotografias e documentos históricos e uma biblioteca com volumes do tempo de José Pinto Duarte. No entanto, seu bisneto Raul Crespo, que vinha atuando como gerente geral da empresa, ainda tem esperanças de encontrar algum vestígio de memória: “É possível que algo esteja salvo dentro do cofre, que resistiu ao fogo, mas que ainda não consegui abrir, tamanho o estrago causado pelo incêndio.”

Revista Fon Fon, 20/12/1924 / Reprodução: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Por enquanto, fica a lembrança de “Cardosina”, a valsa, cuja estreia fonográfica se deu em 1987, no piano solo de Miguel Proença. Clique aqui para ouvir as gravações da composição de Ernesto Nazareth.

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