UM MAXIXE NOS EUA - A INCRÍVEL HISTÓRIA DE DENGOSO (PARTE 3): AUTORIA

Alexandre Dias 16.07.2012

Na parte 1 e na parte 2 desta trilogia vimos que o maxixe Dengoso desfrutou de um sucesso nos EUA e Paris a partir de 1913, sem precedentes na música brasileira. Recebeu mais de 100 gravações, e mais de 70 edições, foi cantado em musicais, integrou trilha sonora de filmes, e depois renasceu como Boogie Woogie Maxixe, integrando o repertório das mais famosas big bands.

Toda essa história fica mais curiosa quando vemos que a autoria não é certa (ou seria?). Dengoso foi publicado em 1907 assinado por um certo Renaud.

Não existe um manuscrito autógrafo de Dengoso no espólio de Nazareth e o próprio compositor nunca a incluiu em nenhuma de suas listagens manuscritas. Além disso, no catálogo da exposição do centenário de Ernesto Nazareth, realizada pela Biblioteca Nacional em 1963, esta música não consta como parte da obra, sendo apenas mencionada de passagem: “na época, atriubuído ao compositor”. 

Então por que a atribuímos a Nazareth? Listo abaixo as principais evidências.

A evidência mais antiga é o catálogo de 1912 da gravadora Columbia, que lista Dengoso como “tango [de] E. Nazareth”. Curiosamente, o gênero que era originalmente “maxixe” na partitura foi transformado aqui em “tango”, talvez como uma forma de Nazareth aceitar seu nome associado à música.


(imagem cedida pelo pesquisador José Silas Xavier)


Analisando informações impressas na edição original da partitura, publicada em 1907 pela Casa Vieira Machado (V.M. & Cia. nº 871), o biógrafo Luiz Antonio de Almeida argumenta que “como no rodapé [desta edição] podemos ler “Prop. dos Editores” e cientes de que jamais fizera parte do perfil dessa empresa editar obras de autores estrangeiros não consagrados, acrescentando-se, ainda, o ridículo de se levar a público gênero absolutamente brasileiro feito pelas mãos de algum europeu ou norte-americano, só poderíamos concluir que se tratasse de criação de gente próxima dos proprietários.”

Ainda segundo Almeida, por volta do mesmo ano [1912], Dengoso apareceu editado na coleção de tangos brasileiros da Casa Mozart, juntamente com outros 24 tangos de Nazareth. Ou seja, pela primeira vez vemos o nome de Renaud e Nazareth juntos, com obras impressas pela mesma editora.


(Coleção de Luiz Antonio de Almeida)

Em 1930,  o jornal O Paiz publicou uma matéria sobre o 78-RPM (Odeon 10.718) recém gravado por Nazareth. No centro do texto, Dengoso é mencionado como uma das obras de Nazareth. 


(Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional)

Já o catálogo de cerca de 1936 do editor Ernesto Augusto de Mattos credita a autoria de Dengoso de modo híbrido: Renaud Nazareth (em meio a 28 peças de Ernesto Nazareth):


(Coleção de Luiz Antonio de Almeida)

O pseudônimo possivelmente foi inspirado, conscientemente ou não, em uma edição dos Exercícios Diários de Carl Tausig traduzida para o francês por Albert Renaud, que está presente no espólio de Nazareth.


(Coleção de Luiz Antonio de Almeida)

Além disso, desde 1913 vemos dezenas de edições estrangeiras de Dengoso tanto em Paris como nos EUA que creditam a autoria integralmente a Ernesto Nazareth.

É possível que alguma casa editorial brasileira tenha enviado alguns exemplares desta música para o exterior creditando sua verdadeira autoria. Outra hipótese, levantada na parte 1 deste texto, é que o musicólogo Mário de Andrade teria sido o link.

Como exemplo da representatividade de Dengoso no exterior, vemos uma recepção em homenagem ao presidente Epitácio Pessoa em Nova York em 1919, na qual foram tocados Brejeiro e Dengoso, ambos com crédito a Nazareth.

Na capa do convite, lia-se "Luncheon given in honor of His Excellency Dr. Dom Epitacio Pessoa Presidente Elect of the United States of Brazil by The Pan American Society of the United States on Thursday, June the twenty sixth, 1919. Hotel Astor, New York City"

Outra evidência importante é o depoimento que Julita Nazareth, sobrinha do compositor, deu a Luiz Antonio de Almeida, afirmando que seu tio assinara “alguns sambas e maxixes [em época não determinada por ela] com pseudônimo, por sentir-se constrangido em colocar seu verdadeiro nome em peças de gêneros tão populares”.

Dengoso é o único maxixe na obra de Nazareth, e, não por acaso, é a única peça em que escondeu seu nome, embora no final da década de 1920 tenha ensaiado outro pseudônimo para sambas carnavalescos: “Toneser”, que é um anagrama de “Ernesto”, e que não chegou a sair dos manuscritos durante sua vida. Almeida argumenta que o nome “Renaud” também pode apresentar algum tipo de cifragem, já que contém as sílabas “re” (inversão de “er” de Ernesto) e “na” (de Nazareth).

Na época em que Dengoso foi publicado no Brasil (1907), o maxixe era considerado “a mais baixa de todas as danças”, a “dança excomungada”, como alcunhou o pesquisador Jota Efegê. Nazareth, diferentemente de Chiquinha Gonzaga, não se sentia confortável compondo maxixes, e portanto, para publicar um, só poderia ser cifrado sob um pseudônimo. O caráter afrancesado do nome Renaud seria uma forma de compensar o ritmo “chulo”?

É tentador analisarmos este caso sob a ótica da história de Pestana, o personagem machadiano do conto Um Homem Célebre, que ambicionava compor “alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann”, mas cuja vocação era compor polcas que chegavam “à consagração do assobio e da cantarola noturna”. Naturalmente que Nazareth não pode ser reduzido a Pestana, posto que compôs as peças que quis, nos gêneros que quis, sejam de sabor popular, erudito, ou ambos. Como afirma José Miguel Wisnik, em seu ensaio Machado Maxixe, “Nazareth é o primeiro Pestana que deu certo”.

Porém há um aspecto irônico de Pestana aqui: a única peça que Nazareth publicou sob um pseudônimo, justamente para não se associar a um gênero tido como baixo, tornou-se sua peça de maior sucesso editorial no mundo, sua quarta música mais gravada, e o primeiro grande sucesso de uma música brasileira no exterior, precedendo em algumas décadas os sambas cantados por Carmen Miranda, e a bossa nova.

Continua um mistério se Nazareth soube de todo este sucesso que sua música teve. Porém, se soube, talvez não teria motivação para reclamar os direitos.

Segundo a biógrafa Edinha Diniz, Chiquinha Gonzaga afirmou em entrevista à Gazeta de Notícias em 1913, sobre direitos autorais: “ela declara ter levantado a questão por estar cansada de ser explorada, de trabalhar para os outros. Diz que de Paris mandaram buscar 20 tangos seus: o maxixe triunfava nos palcos e salões franceses”. De fato, seu Gaúcho (corta-jaca) foi publicado em Paris pelo editor Francis Salabert, juntamente com músicas de Nazareth.

Porém se Nazareth fizesse o mesmo, teria que admitir abertamente a autoria de um maxixe. Como o próprio compositor afirmou em entrevista: “Duas coisas dão-me imenso prazer: uma pessoa a ouvir-me com reverência e um pianista desconcertado ao tentar transpor alguma dificuldade encontrada em minha música”. Ou seja, suas músicas eram para ser mais ouvidas do que “maxixadas”.

E quanto ao conteúdo musical de Dengoso? A linguagem seria nazarethiana?

É interessante notarmos que o acompanhamento na mão esquerda de toda a peça é exatamente o mesmo de seus tangos brasileiros: semicolcheia-colcheia-semicolcheia – 2 colcheias.

Harmonicamente não é uma peça particularmente elaborada. Porém encontraremos na obra de Nazareth peças com harmonia ainda mais simples, como é o caso do tango brasileiro Beija-flor, cuja primeira parte oscila apenas entre os graus I e V.

Nazareth é conhecido por seu tratamento ímpar nos baixos, e é isto que observamos em toda a partitura de Dengoso: uma sequência bem pensada dos baixos, com diversos desenhos melódicos.

Pianisticamente podemos notar um uso discreto, porém presente, de diversas técnicas que constam em outras obras de Nazareth: escalas, oitavas repetidas, saltos na mão esquerda do tipo baixo + acorde, notas repetidas que exigem troca de dedo (com ligaduras indicando o fraseado), e até um grupeto, ornamento característico de músicas eruditas.

Portanto as evidências são muitas a favor da autoria de Ernesto Nazareth.

Dengoso oferece um caso único na música brasileira, que merece ainda ser estudado em mais profundidade. O que teria pensado Ernesto Nazareth disso tudo?

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Esta trilogia sobre o Dengoso gerou a matéria de página inteira "Ernesto Superstar" em O Estado de São Paulo (14-07-2012)

TAGS História, Obras

COMENTÁRIOS

Rodrigo Alzuguir - 26.07.2012

É dengo, é dengo, é dengo, meu bem!

Rapaz! Como aprofundar mais? Você já foi longe paca, e conseguiu provar por A + B que Ernesto é Renaud. Mais que isso é dengo seu! Hehehe! Parabéns! Delícia de ler.

Wandrei Braga - 16.07.2012

Memória salva

Querido Alexandre Dias, a quem cumprimento, também em nome de todos que contribuíram para este artigo em 3 partes. Memória salva!!! Parabéns pela pesquisa e riqueza de detalhes. Ver, ler, ouvir, tocar e sentir... admirável trabalho, memória registrada, memória salva!!! Que possa continuar publicando para o nosso deleite. Abraços cordiais

André Pédico - 16.07.2012

fantástico

Os argumentos pró-Nazareth são muito fortes, realmente! É fascinante notar que essa peça, de sucesso mundial, pode ter sido considerada "menor" pelo próprio compositor, que sempre foi um mestre em aliar qualidade artística e apelo popular!

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