NAZARETH E SUA ÉPOCA (PARTE 3): GÍRIAS DO RIO ANTIGO

Alexandre Dias 16.04.2013

Quando pensamos no Nazareth, em geral o associamos a um pianista certinho, anti-boêmio que almejava aos padrões mais puritanos de uma estética superior, inspirada em Chopin.

Esta imagem de asceta pode ser verdadeira em algumas situações, especialmente quando vemos depoimentos que ressaltam o que poderia ser um certo pedantismo musical, como o relato do antigo funcionário da Casa Carlos Gomes, José de Oliveira, o “Juca”, mais tarde gerente da Casa Carlos Wehrs:

José de Oliveira, o “Juca”

“Naquele tempo, a única maneira de se conhecer as novidades musicais era através dos pianistas que as casas contratavam para as 'demonstrações'. Não havia rádio, os discos eram raros e o cinema mudo. Isso obrigava o público a fazer música em casa. Quem gostava de música devia fazê-la, comprando-a escrita. Escolhia, ouvindo o pianista da casa. Lembro de algumas meninas pretensiosas que gostavam de fazer demonstrações técnicas diante de Nazareth. O mestre era muito exigente e não admitia que suas músicas fossem 'maltratadas'. Quase sempre mandava suspender as execuções, lançando o seu habitual 'assim não se toca Nazareth!..' Às vezes, Nazareth chegava a perder a paciência e, com ela, a 'linha'. Mas, quando o ouvinte conseguia interessá-lo, dava verdadeiras aulas de interpretação. Insistia muito nos acentos, nas pausas, no fraseado e, tratando-se do 'Brejeiro', 'Odeon', ou de outras páginas de que ele gostava particularmente, as aulas eram mais demoradas e os exemplos mais repetidos. ' - Isso é Nazareth!...' - dizia - e recomendava:  ' - Esta música não se pode tocar de qualquer maneira; é preciso estudá-la... (...)'

(Jornal do Commercio, 24 de março de 1963)                                                                                                                                    

Ou quando vemos o relato do compositor Francisco Mignone, sobre quando conheceu Nazareth na casa de música de Eduardo Souto:

Francisco Mignone“Enquanto Nazareth tocava, fui-me chegando e, em certo momento, interrompi-o dizendo:
- Eu também toco obras suas.
Ele ficou assim, meio assustado.
- O senhor já toca?
- Eu toco Brejeiro. Se me der licença, vou tocá-lo para ver o que que o autor acha.
Então, sentei-me ao piano e comecei a tocar [Mignone exemplifica, tocando de maneira rápida], com muito entusiasmo. Aí, o Nazareth disse:
- Mas essa não é minha música!
- Como assim?
- Eu  toco desse jeito.
Então, sentou ao piano e tocou. [Migone exemplica, tocando de maneira mais lenta]. Tudo bem lento, bem cantado. Aliás ele [dizia]:
- Toda a minha música é estropiada! Eles tocam tão depressa... O Apanhei-te, cavaquinho é um desastre! Aquilo é bem devagar, arpejando a mão esquerda, dando a impressão de cavaquinho.”
 
Curta-metragem Lição de Piano, Funarte, 1978, dir.  João Carlos Horta.

 

Porém na obra de Nazareth vemos também um certo ar malandro, que transborda na brejeirice de suas composições, e no vocabulário de gírias que utilizou nos títulos de algumas peças.

Essas gírias e expressões registram costumes e jeitos do Rio antigo que hoje se apagaram ou mudaram, mas que mostram um lado bem-humorado de Nazareth, atento à linguagem das ruas, e ainda pouco estudado.

Os primeiros títulos a chamarem a atenção são dos tangos brasileiros Cuéra (1912), Cutuba (1913) e Turuna (1899).

O dicionário Aurélio XXI registra Cuéra (hoje grafada Quera) como: “[Do tupi = ‘velho’] Bras. S. Pop. V. valentão (1)”; Cutuba: “[De or. tupi, poss.] Adj. 2g. Bras. N. N.E 1. Muito inteligente. 2. Muito bom. 3. Bonito, belo. 4. Importante, poderoso. 5. V. V. valentão (1)"; e Turuna: “[do tupi = ‘negro poderoso’] Adj. S. m. Bras. Pop. 1. Forte, poderoso. 2. V. valentão (1 e 3)".

Além da curiosa origem tupi em comum, em todas as três o dicionário faz referência à palavra valentão. Então vamos ao seu significado:

Valentão: Adj. 1. Que é muito valente, decidido, intrépido [sinônimo na grande maioria popular ou de gíria: afoito, alentado, arrojado, decidido, despachado, destemido, estourado e (bras.) afuleimado, alarife, amargoroso, bamba, batuta, brabo, caborfudo, chegador, colhudo, cumba, cupinudo, cutuba, danado, dente-seco, desabotinado, desempenado, destorcido, disposto, duro, espritado, fuá, grenado, grulha, grulhaço, lanfranhudo, largado, machão, macho, matudo, onça, osso, pavena, peitudo, quebra, quebra-feio, quera, querudo, sacudido, sarado, seco-na-paçoca, surunganga, taita, tapejara, taura, teba ou tebas, tiba, toco, topetudo, torena, torunguenga ou tourunguenga, touruno, tupina, turuna, venta-furada, ventana, ventania, venta-rasgada, ventana].

Coincidentemente ou não, o termo arrojado, que aparece no início da lista, é título de outra composição de Nazareth.

Essa profusão de termos se aproxima do que hoje chamamos de craque ou bamba, alguém muito bom no que faz. Mas talvez mais que isso, alguém de fato esperto, antecipando algo do que na década de 30 seria a figura do malandro, no samba.

Segundo Luís Fernando Hering Coelho, a gíria cotuba era corrente na época, especialmente com relação à atividade musical.  Os locutores de gravações 78-RPM de música popular nas primeiras décadas do século XX “utilizavam expressões como 'Entra, cotubas!', como que incitando o início da performance, após o anúncio do título da música e do nome da casa gravadora, como era de praxe”. Podemos ouvir um exemplo disto na gravação de Carne Assada, de Pixinguinha, pelo Choro Carioca no 78-RPM Phoenix 70650 (entre 1915 e 1918)

O termo aparece no nome da jazz band Os Oito Cotubas, fundada por Donga em 1923, que foi uma espécie de dissidência dOs Oito Batutas de Pixinguinha.

Os oito Batutas em sua formação original (Jacob Palmieri, Donga, José Alves Lima, Nélson Alves, Raúl Palmieri, Luiz Pinto da Silva, China e Pixinguinha.)

Os Oito Batutas em sua formação original

E abaixo vemos uma nota noticiando a estreia dOs Oito Cotubas:


O Paiz, 27 de abril de 1923

turuna aparece no nome do grupo pernambucano Turunas da Mauriceia, formado em 1926.


Turunas da Mauriceia

Seu significado é explicitado pelo Dicionário brasilico-mineiro, de Lindolpho Gomes:


(reproduzido em O Paiz, 27 de abril de 1923)

E quera aparece no título do teatro de revista “O Cuéra”, de Carlos Leal e Cardoso de Menezes, com música de Luiz Filgueiras, que estreou 1914, dois anos depois da polca-tango de Nazareth, cujo frontispício vemos abaixo.

Cabeçalho da polca-tango Cuéra, de Ernesto Nazareth

Inversamente, todas elas são antônimos de facão, que, na gíria da época, indicava um músico que tocava mal, que não dominava seu instrumento. Daí o nome do grupo gaúcho O Terror dos Facões.


O Terror dos Facões, 1913

Outra gíria muito parecida é a do tango Escovado, que conota a princípio alguém bem arrumado, elegante, que se traja com apuro (e com o terno escovado). Algo como um dândi, ou janota, esta última sendo também título de uma peça do Nazareth, adjetivo que talvez poderia ser aplicado ao próprio autor considerando o esmero com que se vestia.

O pianista Aloysio de Alencar Pinto afirmou ao biógrafo Luiz Antonio de Almeida:

“certa vez, pude observar que ele usava um terno de casimira inglesa, esverdeado, que combinava exatamente com a cor dos olhos dele. Ninguém usava um terno daquela cor!... Era, mesmo para a minha concepção de garoto, uma coisa muito excêntrica, para a época...”

Porém, escovado assume também a conotação de esperto, como podemos ver nesta charge de carnaval publicada na Gazeta de Notícias de 21 de fevereiro de 1903:



Ao descrever os planos carnavalescos de cada tipo, a charge afirma que “O Chico, cabra escovado, não sabe ainda onde passará a noite, mas provavelmente será no xadrez”, mostrando uma transformação do significado de escovado.

Curiosamente, a palavra arrufos, que aparece no início da imagem, também é o título de uma música de Nazareth.

A associação da gíria escovado com o carnaval, e com a acepção de cuéra, turuna e cutuba fica evidente em notas de jornal como esta:

Gazeta de Notícias, 5 de fevereiro de 1904

Complementando este lado “malandro” na obra de Nazareth, vemos uma série de expressões populares da época, algumas chegando a brincar com as próprias adversidades: Apanhei-te, cavaquinho (1914); Cruz, perigo!! (1879) Não caio noutra!!! (1881); Gentes! O Imposto pegou? (1880); Até que enfim... (Time is money) (1926); Está Chumbado (1898); Tudo sobe!.. (1923). ; Feitiço não mata (1929); Fora dos eixos (1922); If I am not mistaken (1922); Não me fujas assim (1884); O que há? (1921); Sustenta a... nota... (1919); Vem cá, branquinha (1914); Comigo é na madeira (1929); Fora dos eixos (1922); Você bem sabe (1877); Ouro sobre azul (1915); Podia ser pior (1916); Crises em penca!... (1929); Estás maluco outra vez? (peça não composta) (ca. 1933);

Para ver o significado de cada expressão, acesse o texto referente a cada peça, clicando sobre o respectivo título .

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Os trechos de jornais da época utilizados neste texto estão disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional.

TAGS História

COMENTÁRIOS

Thaís - 22.05.2013

Muito interessante! Vemos aqui também como os pretos eram discriminados (infelizmente, por pura ignorância...)

Luiz Gonzaga Quintanilha de Oliveira - 19.05.2013

gírias na obra de Nazareth

Belo trabalho de pesquisa.Parabéns!

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