NAZARETH POR ELE MESMO

Alexandre Dias 18.06.2014

“Biografias são apenas as roupas e botões do homem. A biografia do próprio homem não pode ser escrita”.

Mark Twain

Passaporte de Ernesto Nazareth. 1932. Coleção Luiz Antonio de Almeida.

 

Se pudéssemos conversar com Nazareth em pessoa, o que aprenderíamos? Como ele seria? Existem registros que remontem diretamente a suas falas ou temos que recorrer apenas a fontes secundárias?

Na história da música (e demais histórias) existe um fenômeno importante, que os pesquisadores conhecem bem: quanto mais antigo um músico, menor a probabilidade de se encontrar documentos diretamente ligados a ele, ou que registrem suas próprias ideias (como entrevistas, cartas, autobiografia, e, em tempos mais modernos, gravações e filmagens).

Compositores brasileiros nascidos em meados do século XIX, como Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado, Anacleto de Medeiros e Alexandre Levy apresentam este problema. Nazareth, nascido em 1863, também se enquadra neste status, porém em menor grau, pois algumas entrevistas suas foram publicadas em jornais da época. São pequenas, mas são dos registros mais preciosos para entendermos o compositor, pois constituem fontes primárias.

As transcrições a seguir são oriundas da pesquisa biográfica de Luiz Antonio de Almeida sobre Ernesto Nazareth, recém-publicada no site EN150. Todas as falas diretas de Nazareth estão destacadas em negrito. Ao final de cada entrevista apresento um breve resumo das informações mais relevantes.

Em 1963, o jornalista Brício de Abreu relembrou um encontro que teve com Ernesto Nazareth:

Conheci-o em 1924. O nosso grupo de boêmios e jornalistas, semanalmente, reunia-se em casa do Dr. Bandeira de Gouvêia, na Rua Buarque de Macedo. Eram reuniões de poesia, canto e ternura. Nascimento Filho (barítono), Lulu Vidal (o Barão), Thedim Lôbo, Gomes Leite (poeta que morreu moço por atropelamento), Carlos Frederico da Silva, Agenor Chaves, às vezes Moacyr de Almeida (meu companheiro em “A Tribuna”), Afonso Lopes de Almeida, Álvaro Guanabara, Cláudio Manuel e tantos outros. Uma noite, Mme. Bandeira de Gouvêia apresentou-nos Ernesto Nazareth. Cabelos grisalhos, já penteados da direita para a esquerda, tal como vemos na foto de 1926, gordo, de estatura mediana. Foi uma noite memorável, em que Nazareth tocou várias de suas músicas, só parando para ceder lugar a um brasileiro magro, esquálido, de nome alemão, que morava lá em Santa Teresa, e que era louco por música popular. Foi a única vez que tive contacto com o mestre que falava calmo e simples, e que era de uma modéstia que impressionava. Lembro-me de que Agenor Chaves, num grupo que formamos em redor do mestre, perguntou-lhe como iniciara a sua vida de compositor. Nazareth sorriu e timidamente contestou:

“ - Detesto falar de mim. Mas, se quer saber alguma coisa a meu respeito e o que penso, aqui tem uma entrevista que me arrancaram, à força, na semana passada, para a ‘Folha da Noite’, de São Paulo.”

E, tirando do bolso uma folha de jornal, dobrada, deu-a a Agenor Chaves. Nos meus apontamentos consta: “...como estamos a 28 de setembro de 1924, o artigo deve ter sido publicado na segunda semana deste mês. Vêr em São Paulo”. Nunca pude fazê-lo, mas quando for à capital paulista, procurarei e ainda hei de ver o que diz essa entrevista. Em todo caso, aqui fica a indicação aos rebuscadores.

A impressão que nos ficou daquela noite foi imensa e ainda dura até hoje. Nazareth não se parecia com nenhum outro pianista quando tocava. E, creio que freqüentávamos todos os que eram conhecidos e populares, naquela época.

Brício de Abreu O CRUZEIRO. Rio de Janeiro, 1963

 

A matéria em questão foi publicada na Folha da Noite, de São Paulo, em 8 de setembro de 1924 (acesse a imagem original aqui).

 

FLOR AMOROSA DE TRÊS RAÇAS TRISTES

O QUE DIZEM A “FOLHA” OS TRÊS MAIS POPULARES

COMPOSITORES BRASILEIROS

O PERFIL DE NAZARETH

 

Numa tarde de Agosto último, o acaso reuniu, num canto da rua do Ouvidor, os tres mais populares dos nossos compositores: Souto, Nazareth e Tupynambá. Foi no estabelecimento musical de propriedade do primeiro, apesar de também se negociar alli artigos photographicos. A hora baça do crepusculo inutilizou a lembrança de se bater uma chapa, flagranteando o encontro. Em todo caso, restava o recurso do lapis de Paim, que soube tão bem penetrar o perfil de Nazareth, emquanto este analisava a opulencia dos seus rythmos, do seu dedilhado, nesse modelo de dansa caracteristica que é o “Apanhei-te, cavaquinho!”

Fixadas as physionomias, tentou-nos apanhar as ideas dos tres.

Nazareth é surdo. O barbarizo atordoante de fora, da rua, sonorizada pelas ondas dos passantes e pelo som moido dos realejos dos mendigos, rolava até á pequena sala onde conversavamos, difficultando-lhe a participação na palestra. Tambem a timidez não lhe solta a lingua. É regra geral que os surdos fallam baixo, como para demonstrar a terceiros, por uma especie de pudor ironicamente explicavel, que ouvem distinctamente o que os menos discretos lhes berram aos ouvidos. Nelle, porém, não é só isso o que o obriga a fallar num quasi murmurio: é a modestia, a modestia legitima, laivada de uma desconfiança infantil pelo que possa valer.

- Um critico francez [Darius Milhaud] chamou-o genial. O senhor leu essa referencia ao seu nome? - indagámos em voz alta, encostando a bocca ás suas faces sanguineas, roçando-lhe as mechas de cabellos brancos. Elle fez um gracioso amuo:

- Ah! Já sei... Não sei por que... Eu não mereço nada disso.

- Quando nasceu? - prosseguimos.

- A 20 de Março de 1863.

- Tem então...

- Sessenta annos.

- Pois não parece. Está ainda bem forte.

É de facto. Sua radiosa apparencia de saude engana o calculo que se lhe faça da idade. Depois, quem o vê tocar e attenta na prodigiosa articulação que elle desenvolve ao executar os seus maxixes, determinadamente inçados de effeitos difficilimos de conseguir, e a que a agilidade electrica de suas mãos accrescenta imprevistos floreios, tão ao sabor dos “choros” cariocas, para logo se convencer de que um sangue jovem ainda os anima.

Ao louvor que lhe fizemos ao virtuosismo, elle torna a contrapôr um agradecimento acanhado:

- É herança de minha mãi. Minha mãi chegou a causar admiração aos professores de sua época, sem nunca ter tido mestres. Digo herança, porque eu tambem me fiz autodidacta, é certo que por força das circumstancias. Lições, só recebi oito na vida as de um professor francez que, durante a minha mocidade, viveu aqui no Rio de Janeiro. Tambem, depois disso, nunca mais tive quem me ensinasse a tocar, e muito menos a compor. O que me valeu e continúa a valer de muito são os exercicios continuos que faço. Dois annos passei martellando de noite o piano de um club e dei graças por ter, desse modo, um instrumento á minha disposição...

- Então o seu primeiro cuidado era possuir um instrumento - interrompemos, admirados.

- Se era! - frizou elle, com uma ponta de azedume. Passei oito annos sem ter piano. O senhor talvez não calcule o que representa isso para um homem fascinado pelo piano. Parece castigo, não é? Hoje em dia consigo tocar muita cousa classica, mas exclusivamente pelo meu proprio esforço.

- E as composições? Não lhe tem auferido lucros?

- Lucros? Eu vivo de liccionar, pois de outra forma não ganharia a vida.

- Bem. E quantas composições conta ate hoje?

- Mais de duzentas. A primeira foi um maxixe [polca], a que dei o titulo de “Você bem sabe”. O senhor de certo não conhece... É... Já faz muito tempo...

- Mas qual é a sua composição predilecta?

- Ah!... Isso é que não póde ter resposta definitiva, assim á queima-roupa... Gosto de algumas... Lembra-se do "Brejeiro"?

- Como não?

Ai, ladrãozinho! Dos teus labios de coral. (Tem dó!)

Dá-me um beijinho! Não te póde fazer mal. (Um só!)

- Todo o Brasil canta isso - concluiu elle num sorriso.

FOLHA DA NOITE. O perfil de Nazareth. São Paulo, 8 de setembro de 1924. 

Caricatura de Ernesto Nazareth, por Paim. Publicada na matéria supracitada.

Neste encontro entre os compositores Eduardo Souto, Ernesto Nazareth e Marcello Tupynambá, que por pouco não foi registrado em foto devido à "hora baça do crepúsculo", vemos algumas características de Nazareth descritas pelo jornalista: timidez e modéstia (quando questionado sobre os elogios de Darius Milhaud), associadas a uma fala de volume baixo. Sua surdez, já bastante presente aos 60 anos, também chama a atenção, embora possuísse uma “radiosa aparência de saúde”. Ao executar algumas de suas músicas ao piano, demonstra virtuosismo, “prodigiosa articulação”, “agilidade elétrica” nas mãos e “imprevistos floreios, tão ao sabor dos ‘choros’ cariocas”, reforçando que seu pianismo era constantemente imaginativo, sempre buscando novas possibilidades.

Na entrevista propriamente dita, Nazareth se considera autodidata tanto no piano, instrumento no qual toca “muita coisa clássica”, quanto na composição, embora mencione como seus mestres sua mãe (Carolina Augusta da Cunha Nazareth), que “chegou a causar admiração aos professores de sua época, sem nunca ter tido mestres”, e um “professor francês”, com quem teve oito aulas, e que na verdade se tratava do compositor negro Charles Lucien Lambert, nascido em Nova Orleans. Eduardo Madeira, compositor e pianista amador, com quem Nazareth estudou por cerca de dois anos, não chega a ser mencionado. Nazareth menciona o valor dos exercícios contínuos de técnica que faz ao piano, e lembra da época em que não possuía piano, e passou “dois anos martelando de noite o piano de um clube”. Depois revela que foram oito anos no total sem ter piano, que constituíram uma espécie de castigo “para um homem fascinado pelo piano”.

Carolina Augusta da Cunha Nazareth (mãe de Ernesto) e Charles Lucien Lambert (um dos professores de Nazareth).

Quando perguntado sobre lucros resultante de suas composições, afirma que “vive de lecionar, pois de outra forma não ganharia a vida”. E, ao falar de suas obras, relembra que possui mais de 200, cita a primordial polca-lundu Você bem sabe, e, como composição predileta, menciona com prazer o Brejeiro, que “todo o Brasil canta”, com a letra de Catullo da Paixão Cearense.

Menos de dois anos depois, Nazareth foi entrevistado pelo Diário da Noite, durante sua turnê em São Paulo. Na ocasião ele é tratado com grande honra e referenciado como “rei do tango” e “o criador do tango brasileiro” (embora este último título se aplique melhor a Henrique Alves de Mesquita):

 

O CREADOR DO TANGO BRASILEIRO

ERNESTO NAZARETH FALLA AO “DIARIO DA NOITE”

Ernesto Nazareth é um notavel compositor brasileiro a quem ninguem nega o titulo que merecidamente lhe é dado de “rei do tango”.

Foi elle quem, desde que os seus dedos espertos se familiarisaram com as teclas do piano, se preocupou em crear essa musica tão nossa, ao som da qual se acertaram immediatamente os passos do maxixe, dansa que a tornou popular. Desde que Nazareth, estylisando a polka, dando-lhe um cunho essencialmente nacional, creou o tango, todos os maxixes, chulas e sambas carnavalescos não têm senão repetido, embora de uma fórma mais simples, as mesmas phrases, os mesmos motivos, que a alma popular brasileira consagra e o povo recebe com bôa disposição para cantarolar por toda parte, a qualquer momento e em quaesquer circumstancias.

Informações de Catullo Cearense

Há já alguns dias que Ernesto Nazareth está entre nós. É a primeira vez que sáe de sua terra natal - São Sebastião do Rio de Janeiro. Com quanto receio não aportou a estas plagas desconhecidas! Há já bastante tempo que Nazareth planejara tal viagem. Diziam-lhe, porém, que a platéa de S.Paulo era demasiadamente exigente e parcamente exteriorisava os seus sentimentos... Por isso, sempre vacilou.

Catullo Cearense deu-lhe, porém, informações mais agradaveis da Paulicéa e aconselhou-o, ultimamente, pela “Gazeta de Noticias”:

“Não vacille. Vá. Tenho confiança no seu talento e plena confiança na grande alma e grande cultura dos paulistas. Quem lhe disser que a platéa é fria, ou mente por mentir, ou foi um blóco de gelo que cahiu numa fornalha desfazendo-se todo. Não quero dizer mais nada, porque não desejo arrebatar a surpreza da cultura paulista, quando lhe ouvir, maravilhada, as maravilhosas composições em que a sua alma canta com todos os gorgeios da passarada do Brasil.”

Paulicéa! Como és formosa!

Estando em S.Paulo, não podiamos deixar de ouvil-o. Recebeu-nos Ernesto Nazareth com a maior amabilidade, na residencia do sr. Jacyntho Silva, onde se acha hospedado com o maior carinho e rodeado de uma atmosphera de amizade sincera e dedicada, como elle proprio confessou.

Nazareth é a modestia personificada. Chega a ultrapassar as raias do commum, o acanhamento que seu semblante immediatamente revela ao ser obrigado a se referir a si proprio.

- Sou da Capital Federal - declarou-nos - e é a primeira vez na minha vida que ponho o pé fora de lá. S.Paulo me tem encantado de uma maneira irrelatavel. O circulo de amigos que em redor de mim logo se apresentou é grande. Bem maior do que o que mantenho no meu socegado recanto de Ipanema. Pretendo realisar algumas audições em Santos, Campinas e nesta capital. Realisarei antes, porém, uma audição especial para a imprensa em dia opportunamente fixado.

Mas... nunca pensára antes em vir a S.Paulo? - interrompemos. Com ar de quem procurava lembrar-se de um facto não mui remoto, o velho musico nos respondeu:

Há poucos anos, quando Antonietta Rudge Miller realisou um concerto no Rio de Janeiro, lá estiveram tambem, para assistil-o, o fallecido professor Chiaffarelli e o professor Cantù. Recebi então um convite para me fazer ouvir pelos tres, na pensão em que estavam hospedados. Timido embora, executei, com o cuidado que a presença dos mestres exigia, uma série dos meus tangos, que os encantou deveras. A um dado momento d. Antonietta me disse: “Sabe que eu também toco alguns dos seus tangos?” Com que alegria e prazer não ouvi, executado por mãos que honram, o meu “Nenê”?!...

O maestro Chiaffarelli, tendo abandonado o Rio de Janeiro sem conseguir despedir-se de mim, fez-me, por intermedio de d. Antonietta, presente de uma linda cigarreira com meu nome gravado, a qual guardo como uma das minhas reliquias. Depois disso, as vezes que elle me escreveu aconselhando-me a vir para S.Paulo foram innumeras. Eu, porém, pobre e mal ganhando para o meu sustento e de minha gente, não podia pensar em tal. Afinal, depois de tantos annos, realisei agora a minha viagem e os dias que aqui tenho passado serão para mim inolvidaveis. Consagrei-os já numa composição, ainda no prelo, a que intitulei: “Paulicéa, como és formosa!”

Algumas horas deliciosas

Sentando-se ao piano, a nosso pedido, Ernesto Nazareth executou o seu tango “Paulicéa, como és formosa!”, com aquella agilidade peculiar aos seus dedos e com aquella firmeza que as musicas do genero requerem. A melodia delicada e harmoniosamente desenvolvida encerra bellezas que a nossa capacidade artistica mal podia perceber, mas que o nosso coração entendia perfeitamente como emanação sincera de um outro coração grato á terra e á gente que o fazia pulsar de alegria. Depois de “Paulicéa, como és formosa!”, Nazareth soube nos proporcionar agradaveis momentos, executando as suas musicas de maior sucesso.

“Brejeiro” - tango que pelo seu caracter eminentemente popular foi cantarolado por toda a gente, nos fez reviver tempos passados, ao mesmo tempo que nos deu plena consciencia do presente, conservando-nos o seu saltitante rythmo compassado mais acordados do que nunca. Assim tambem o “Odeon” e o “Turuna” executados com aquella habilidade do autor, fez nascer dentro de nós um quê mysterioso que ao mesmo tempo que impellia o nosso corpo para a dansa, retrahia a nossa alma para dentro de si propria num silencio voluntario, a se embalar na rêde melodiosa de sons, tecida pelos ageis dedos do artista.

Passaram-se os segundos, os minutos, as horas, deliciosamente, nas quaes Nazareth tocou ainda: “Carioca”, tango; “Passaros em festa”, valsa delicadissima que nos faz realmente sentir a passarada de nossa patria a saudar o sol pela manhã; “Plangente”, tango estylo habanera; e um mimo de delicadeza “Corbeille de Fleurs”, gavotta formada por uma successão de notas - flôres - enfeixadas e artistica e harmoniosamente dispostas pela inspiração ardente do artista. O “Batuque”, executado em ultimo logar, deixou optima impressão no nosso espirito. Henrique Oswaldo fez questão que essa composição de Nazareth lhe fosse offerecida. Aliás, o seu proprio autor manifestou-nos o desejo de executal-a em publico, incluindo-a no programma de um de seus recitaes.

Caminho de flores e espinhos

Ernesto Nazareth teve como sua primeira guia, no teclado do piano, a sua propria mãe. Mais tarde, sentindo quéda para a arte tomou, como professor, a Lucien Lambert que, tendo que regressar a Paris, ministrou-lhe apenas oito lições. Desde então, Nazareth caminhou sósinho.

Autor de mais de trezentas (sic) composições de valor comprovado, admiradas e executadas muitas dellas por autoridades como Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Autonietta Rudge Miller, e outras, Ernesto Nazareth tornou-se um nome popular em todo o Brasil. A primeira musica brasileira introduzida em Paris, era de sua lavra. O seu maior merecimento é o de não se ter deixado contagiar pelas vibrações dissonantes da influencia extrangeira, no turbilhão desenfreado da “jazz-band”. Finalmente, Nazareth é o compositor do “Apanhei-te, cavaquinho!”, musica executada sempre com grande successo pela banda de marinheiros nacionaes, em terras extrangeiras e apresentada como producto genuinamente nacional.

DIÁRIO DA NOITE. São Paulo, 2 de junho de 1926

A matéria começa dizendo que Nazareth já planejava esta viagem há tempos, mas, como ouvia dizer que a plateia de S. Paulo era fria e “demasiadamente exigente (...), sempre vacilou”. Catullo é creditado como a pessoa que desmentiu estas informações e estimulou Nazareth a ir para a turnê, em uma carta publicada na Gazeta de Notícias (a matéria original, publicada em 14 de março de 1926, pode ser lida aqui, no topo esquerdo da página). Novamente são ressaltados o acanhamento e modéstia do compositor, chegando a “ultrapassar as raias do comum”. Nazareth revela que acabou encontrando um grande círculo de amigos na capital paulista, “bem maior do que o que mantém em seu sossegado recanto de Ipanema”, e comenta as demais cidades em que pretendia se apresentar (inclusive em Santos, recital que provavelmente não se concretizou).

Nazareth menciona uma ocasião em que tocou uma série de seus tangos para a famosa pianista Antonietta Rudge, seu falecido professor Luigi Chiaffarelli (também mestre de Guiomar Novaes) e o maestro italiano Agostino Cantù, na pensão em que estavam hospedados no Rio de Janeiro. Rudge tocou para Nazareth seu tango “Nenê”, e Chiaffarelli insistiu em inúmeras cartas subsequentes que Nazareth fosse a São Paulo; e neste ponto a justificativa para não ter ido é a falta dinheiro. É difícil saber quando exatamente se deu este encontro, por ocasião de um concerto de Antonietta Rudge no Rio de Janeiro “há poucos anos”, pois temos registro de diversos recitais da pianista no Rio desde pelo menos 1913.

A pianista Antonietta Rudge, que tocou para o compositor seu tango brasileiro Nenê no início do século XX, e seu professor Luigi Chiaffarelli (ilustração de uma medalha oferecida por seus alunos)

Nazareth então executa para o jornalista sua recém-publicada homenagem a São Paulo “Pauliceia, como és formosa!...” (composta desde 1921, com outro título), e também Brejeiro, Odeon, Turuna, Carioca, Pássaros em Festa, Plangente, Corbeille de Fleurs, e Batuque (que, segundo a matéria, foi dedicado a Henrique Oswald a pedido deste). Assim como na matéria de 1924, sua execução ao piano é elogiada, destacando-se a “agilidade peculiar” e “firmeza” com que toca.

Novamente, seus professores mencionados são sua mãe, e Lucien Lambert. Além de Antonietta Rudge, o jornalista elenca Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro entre os admiradores de Nazareth. Infelizmente não há registro de que alguma das três tenha tocado suas músicas em público ou em gravações (embora Luiz Antonio de Almeida afirme que Guiomar Novaes tocava suas composições em reuniões de fórum íntimo).

Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro, duas das maiores pianistas brasileiras, apontadas como admiradoras da obra de Nazareth.

Por fim, sua brasilidade é elogiada, e o fato de não ter se “deixado contagiar pelas vibrações dissonantes da influência estrangeira” e dos jazz-bands (informação que irá ter ressonância na última entrevista mencionada no fim deste texto).

Pouco mais de um mês depois, é publicada outra matéria contendo um relato que quase se configura em uma entrevista com Nazareth, desta vez pelO Estado de São Paulo:

 

COISAS DA CIDADE

UM ARTISTA BRASILEIRO

Conversava-se ha dias, numa roda, sobre o retrahimento da nossa alta sociedade quanto a festas intellectuaes e concertos, - quando um dos interlocutores observou:

- A mediocridade intellectual e artistica da nossa sociedade - do nosso escol social, como dizem as folhas, - revela-se ainda por outro facto: nunca se viu uma dessas familias ricas ou abastadas abrir os seus salões para um grande artista nosso ou estrangeiro. Soube-se, por acaso, que Magdalena Tagliaferro, a nossa grande pianista, tenha aqui tocado em algum salão particular? E Souza Lima? E Rubinstein? E Brailowsky? E Antonietta Rudge? E Guiomar Novaes? E Pery Machado (violinista)?...

- Com effeito, não ha em S.Paulo esse costume.

- Não ha, e essa falta só depõe contra o bom gosto das nossas familias que se prezam de distinctas e ricas. Entretanto, Souza Lima e Magdalena Tagliaferro tocam nos salões de familias parizienses: os argentinos opulentos da avenida Alvear, em Buenos Aires, convidam sempre para audições de grandes artistas as familias de suas relações. É um meio dos ricos se deleitarem e deleitarem os amigos, auxiliando e estimulando, ao mesmo tempo, os artistas de valor. E depois, como estes percorrem o mundo, recolhendo impressões, é a maneira de lhes dar a conhecer a vida social no que ella tem de mais intimo e precioso, que é a familia.

- Mas as familias ricas de S.Paulo - acudiu outro - não se preoccupam com essas coisas. De artistas, só merecem interesse para a alta roda paulistana, os de cinema...

Ora, quis o acaso que, na mesma noite, assistissemos a um concerto interessantissimo, numa residência particular. De familia abastada? - Longe disso. A sala de visitas não tem mobiliario a Luiz XV, nem tapetes carissimos - mas, assim modesta, vale mais, em bom gosto e distincção, que muitos salões dourados: é uma verdadeira galeria de arte, com telas numerosas e preciosissimas, reunidas pacientemente, amorosamente, por um verdadeiro conhecedor como ha poucos entre nós. E depois, a distincção e fidalguia tão simples e despretenciosa dos donos da casa, a simplicidade e o encanto das visitas, puzeram logo o intruso perfeitamente á vontade.

- Oh! É o senhor! Foi-nos dizendo á porta a amavel dona da casa. Entre e venha ouvir comnosco o Nazareth.

- Nazareth! Quem é?... - Um compositor brasileiro, e de musicas para piano, musicas admiraveis...

Estava já ao piano o compositor. Continuou a tocar sem se perturbar com a nossa chegada, aliás discreta. Musica simples e encantadora, bem longe da xaropada corriqueira que geralmente marca os passos aos dansarinos. Findo o tango - “Brejeiro”, se não nos enganamos - Nazareth teve logo rendida a assistencia. Tambem, a Vienna dansarina de 1860 se encantava com as valsas de Strauss, que ainda ha pouco, por occasião do centenario do “rei da valsa”, eram por um critico consideradas obras de arte. “Batuque”, “Turuna”, “Tenebroso”, “Nenê” são outras tantas pequenas obras de arte de musica essencialmente, fundamente brasileira, ora cadenciada e lenta, ora viva e ligeira, mas sempre repassada de languidez e doçura, e tão agradavel de dansar como de ouvir. “Apanhei-te, cavaquinho!”, por exemplo, é um desses achados felizes que dariam celebridade mundial a um artista que não fosse brasileiro como Nazareth, mas norte-americano, por exemplo...

- E sabe que nos Estados Unidos já se tocam os seus tangos? Disse alguem ao pianista. Sei que um viajante brasileiro deu a algumas orchestras americanas varios tangos seus e, a esta hora, as “jazz-bands” de Nova York já adaptaram aos seus instrumentos o “Apanhei-te, cavaquinho!” ou o “Batuque”... Nazareth ouvia sorrindo, ouvia com certa difficuldade, as mãos em concha no ouvido, e toda a sua physionomia era contentamento e gratidão. Viera passar tres dias em S.Paulo, com o seu amigo Jacintho Silva, e ha tres mezes que aqui está, rodeado de sympathia e apreço. E causa pasmo saber que este artista de talento tão espontaneo já precisou vender o tango “Brejeiro” por cincoenta mil réis... - P.

O ESTADO DE S.PAULO. São Paulo, 18 de julho de 1926;

Aqui vemos Nazareth tocando no salão de uma residência em São Paulo seu tango Brejeiro, em um recital particular. Alguém pergunta ao pianista “E sabe que nos Estados Unidos já se tocam os seus tangos?” (desde 1914 algumas músicas de Nazareth eram tocadas na Europa e EUA, como parte da febre do maxixe no exterior, que resumi neste texto), porém Nazareth, talvez tímido por não escutar direito, apenas sorriu, em gratidão.

Em 1930, foi publicado no Correio da Manhã um interessante relato de uma visita que o compositor Eustórgio Wanderley fez a Nazareth.

 

O QUE É NOSSO

ERNESTO NAZARETH

O REI DO TANGO BRASILEIRO

 

Não é possível falar d’“o que é nosso” sem lembrar o velho pianista Ernesto Nazareth, com razão cognominado - o rei do tango brasileiro. Jardim Sul América, em Laranjeiras, n. 76, apartamento 146. Declinamos o fim da nossa visita e emquanto aguardamos na elegante “sala de estar” do artistico apartamento a vinda do maestro, avisado da nossa presença alí, palestramos com a sra. Eulina Nazareth, sua filha.

- Meu pae vive aqui muito retraido, raramente vae á cidade. Passa o tempo escrevendo suas musicas ou as executando ao piano. O piano estava, realmente, aberto e, a um canto da tampa do teclado, um cartão de prata com os seguintes dizeres: “Ao illustre compositor Ernesto Nazareth seus admiradores de S.Paulo. Julho de 1926”.

- Esse piano foi um presente que lhe offertaram quando elle esteve lá ha uns quatro annos. Ernesto Nazareth apparece bem disposto, physionomia jovial.

- A que devo a honra dessa visita? Vivo agora aqui tão esquecido...

- Nem tanto, e a prova de que não o esquecemos é estarmos aqui para o ver e ouvir.

- A respeito de musica?

- Sim, d’“o que é nosso”, da nossa musica...

- Que hei de dizer?

- Isso esta hoje muito differente. Ouço ás vezes musicas de “fox-trots” que dizem ser brasileira, porém que de brasileira nada têm. É a musica dos “novos”... Rapazes de coragem, hein?...Os antigos, como eu, ficaram no canto.

- Nunca mais tocou em publico?

- Aqui não. Ha uns dez ou doze annos toquei na sala de espera do antigo cinema Odeon com uma boa orchestra. E muita gente pagava entrada sómente para ficar ali ouvindo minhas musicas, meus tangos; não fazia questão de ir ver a fita. A ultima vez que toquei em concertos foi ha quatro annos em S.Paulo.

Um meu amigo, o Camaz, sempre instava para que eu fosse a S.Paulo, dizendo-me que minhas composições eram muito procuradas ali e meu nome bastante popular tambem. Tanto insistiu para que eu fosse dar ali uma audição das minhas musicas, que eu fui. Receberam-me carinhosamente. Depois eram tantas as visitas, os convites para festas, passeios aos pontos pittorescos da cidade, que eu comecei a desconfiar de que tinha mesmo algum merecimento... Um grupo gentil de moças organizou uma festa em que muitas tomaram parte declamando lindos versos e em que eu executei minhas musicas. A gentileza e generosidade dos meus bons amigos de S.Paulo culminaram com a offerta desse piano.

- Se não lhe causasse incomodo, poderia o maestro ter a bondade de executar algumas das suas mais recentes composições?

- Pois não. Com prazer.

Sentando-se ao piano todo elle se transfigura. O aspecto melancolico que tinha ao recordar, saudoso, sua triumphal visita a S.Paulo foi substituido por uma expressão natural de alegria.

E começou a tocar...

Numa revoada cascateante de sons perspassaram pelo teclado os novos tangos: “Cruzeiro”, “Paulicéa, como és formosa”, por fim “O Futurista”, que offerecemos aos nossos leitores por nimia gentileza do autor. Ouvindo essa musica disse um dos nossos mais apreciados maestros:

- Fez bem chamando-a “O Futurista” pela estranheza de certas dissonancias muito bem achadas.

- E dos antigos não nos faz ouvir nenhum?  Perguntamos-lhe.

- Se tem prazer nisso é fácil.

E o rythmo “gingante” do “Brejeiro” espalhou-se pela sala. Seguiram-se-lhe “Nenê”, “Bambino” e “Plangente”... Evocando o passado estava elle, curvado sobre o marfim das teclas como para ouvir melhor aquellas harmonias executadas, ás vezes, num suave “pianissimo” que ia num progressivo crescendo até ao “forte” energico, com bravura. Estava commovido até as lágrimas.

É preciso notar que os tangos de Nazareth não têm rythmo dolente, quasi morbido, dos tangos argentinos. Participam mais das “habaneras” cubanas, têm as syncopes da dansa crioula de Havana e não raro, o “affretamento” das quialteras.

- Se não está cansado, disse elle, ouça uma valsa de que o saudoso barytono Larrigne (sic) De Faro muito gostava e que, como não tivesse título, elle baptisou por “Elegantissima”. Eu disse que bastaria chamal-a “Elegante”, se elle assim a achava; porém, De Faro respondeu que a baptisava por “Elegantissima”, em vista de não haver um outro superlativo ainda “mais absoluto...”

Executou-a ao piano. As phrases eram realmente muito elegantes, o desenho melodico simples, porém de um encadeamento perfeito.

- Quem foi seu mestre? Perguntámos.

- Não tive. Comecei a estudar com a minha mãe que era uma eximia pianista. Aos onze annos fiz minha primeira composição, uma polka. Ainda me recordo della. Era assim... E executou sua primeira composição, uma musica saltitante, alegre, já deixando entrever como seria as mais que lhe succedessem.

Desejamos ouvil-o tocar mais outras musicas suas, porém receiavamos fatigal-o. Isso mesmo dissemos á sua digna filha.

- Não tenha receio; nos tranquillizou ella. O papae é resistente como o vovô.

- Como?  Ainda vive o pae delle?!

- Pois não. Está com 93 annos e ainda trabalha, diariamente, como ha 60 annos passados, na Alfândega, onde é despachante.

Nesse momento a sra. Maria das Mercês (sic), que havia saido da sala por alguns momentos, voltava dizendo:

- Fui chamar o “nosso vôvôzinho”, que ahi vem.

Com effeito surgiu na porta a figura sympathica do sr. Vasco Nazareth, firme, aprumadinho, não parecendo ter mais de 50 e 60 annos.

Felicitamol-o por isso.

- Qual nada! Protestou elle sorrindo. Estou muito acabado, cansado. Imagine que somente na Alfândega trabalho ha 67 annos. Estou muito velho...

- Não diga isso, porque muitos moços de hoje invejam os seus 93 annos sadios e uteis.

Era tempo de nos retirarmos.

Agradecemos a gentileza do acolhimento e nos despedimos. 

Descendo a rua ouvimos ainda sons de piano. Reconhecemos a musica: era o tango “Espalhafatoso” que Ernesto Nazareth executava na continua evocação do seu passado de glorias. Commovedora evocação...

 

Eustórgio Wanderley

 CORREIO DA MANHÃ. Ernesto Nazareth, o rei do tango brasileiro (“O que é nosso”).  Eustórgio Wanderley. Rio de Janeiro, 15 de junho de 1930.

 

Aqui, Nazareth, então com 67 anos, aparece bem disposto, com fisionomia jovial, porém com um tom melancólico, ao afirmar que vive agora lá esquecido. Eulina, sua filha, explica que ele vive ali muito retraído, que raramente vai à cidade, e que passa o tempo escrevendo suas músicas ou as executando ao piano.

Nazareth afirma que a “música dos novos”, os fox-trots, nada têm de brasileira, e que os antigos como ele “ficaram no canto”. Isto reforça brasilidade sempre apontada em sua obra, porém, como curiosidade, vemos quatro fox-trots compostos por Nazareth, possivelmente por influência dos editores, tendo sido dois deles publicados durante sua vida.

Ernesto faz referência às últimas vezes em que havia tocado em público no Rio de Janeiro, por volta de 1917, no Cinema Odeon com a Orquestra Andreozzi, e lembra com afeto sua turnê a São Paulo em 1926, durante a qual foi presenteado com um piano, utilizado regularmente pelo compositor. Desta vez, o responsável pela sua ida a São Paulo é apontado como sendo seu amigo José Camaz, cantor de modinhas amador.

A pedidos, Nazareth toca com prazer algumas de suas recentes composições: “Cruzeiro”, “Pauliceia, como és formosa!...”, e “O Futurista” (que foi impresso junto com o artigo do jornal), e depois “Brejeiro”, “Nenê”, “Bambino”,  “Plangente”, “Elegantíssima”, “Você bem sabe” e “Espalhafatoso”.

Sua postura curvada sobre o piano para ouvir melhor é mencionada (recorrente no depoimento de várias pessoas que o ouviram), e se comenta que suas interpretações faziam amplas gradações de dinâmica, que iam do suave pianíssimo em um “progressivo crescendo até o forte enérgico, com bravura”. As síncopes de sua música são comparadas às das habaneras cubanas, mais tercinadas (i.e. menos rigorosas, mais amolecidas).

Quando perguntado sobre seus mestres, desta vez menciona apenas sua mãe, como exímia pianista. E explica que sua primeira composição (a polca-lundu “Você bem sabe”) teria sido composta aos 11 anos, uma informação diferente da consagrada, de que teria sido aos 14 anos, provavelmente um descuido. Diante da preocupação do entrevistador de que Nazareth iria se cansar, Eulina afirma seu pai é “resistente como o vovô”. Então, neste ambiente familiar (que já não contava mais com Theodora Amália, esposa de Nazareth falecida dois anos antes), descobre-se que o pai de Ernesto, Vasco Lourenço, estava vivo, com 93 anos, e que ainda trabalhava na Alfândega. Maria Mercedes, companheira de Eulina, busca-o para uma breve conversa. Ao saírem de lá, os jornalistas ouvem de longe Nazareth executando seu tango “Espalhafatoso”.

A última participação que vemos de Nazareth na imprensa é na matéria de seis páginas publicada na revista A voz do violão, em 1931. (Acesse a matéria completa aqui). O texto faz um amplo apanhado da vida de Nazareth, e certamente consultou-o diretamente, além de sua família. Porém não há uma citações diretas de suas falas, com exceção do trecho:

(...) Conserva, contudo, o artista, a extrema sensibilidade de sua alma de eleito. E não raro, deixa o piano com as lágrimas bailando-lhe nos olhos claros... Sae-lhe, então, baixinho, essa queixa que traduz todo o amargor de seu temperamento dolorido:

“ - Eu nunca fui comprehendido!...”

A VÓZ DO VIOLÃO. Ernesto Nazareth. Francisco Acquarone. Anno I - nº 2. Rio de Janeiro, março de 1931; e Anno I - nº 3. Rio de Janeiro, abril de 1931. 

 

Na pesquisa biográfica de Luiz Antonio de Almeida, vemos transcritas algumas anotações que Nazareth deixou em uma folha de papel, escritas por volta de 1931. Dentre alguns itens corriqueiros, vemos uma frase que talvez Nazareth sempre tenha guardado consigo, mas talvez nunca a tenha expressado devido a sua timidez e modéstia: “Mostrar aos Snrs. criticos, o que tenho sobre o meu conceito para elles tratarem de mim com mais acerto”. Além disso, duas anotações que mostram preocupação com seus direitos autorais:

 

Tratar dos direitos de minhas músicas, vendidas para piano nas lojas de Arthur Napoleão, Bevilacqua e Vieira Machado e que essas cobram direitos de audições promovidas pela Sociedade Theatral Beneficente de Autores Nacionais; preciso saber si os direitos que elles cobram se terão direito a taes abusos, cobram tudo tirando os direitos reservados aos autores - Procurar...

Fallar também sobre músicas vendidas para pianolas sem consentimento meu pelo Snr. Nascimento e sobre o negocio do Snr. Figner com as casas de músicas, sobre os discos que se apoderaram sem leis bastante para o fazerem.

Neste último trecho, temos a informação reveladora de que os 19 rolos de pianola produzidos pela Casa Beethoven desde 1912 foram vendidos sem o consentimento de Nazareth. Isto afasta portanto a possibilidade de estes rolos terem sido tocados pelo próprio autor, sendo mais provável que tenham sido perfurados manualmente, como era a praxe dentro das possibilidades da época no Brasil (ver o texto A indústria de rolos de piano brasileiros).

Outro documento do próprio punho de Nazareth é uma breve carta lisonjeira enviada à professora de declamação Noêmia do Nascimento Gama, em 21 de outubro de 1926, em agradecimento ao Festival Ernesto Nazareth que ela organizara no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo 24 dias antes.

 

S.Paulo, 21 de outubro de 1926.

Exma. Snra. Da. Noemia do Nascimento Gama:

Dentre as figuras femininas que hei conhecido e que pela cultura e pelo espirito têm ficado na minha admiração, a de V.Excia. occupa lugar de inconfundivel destaque. Com a sua dedicada maneira de ver, sentir, V.Excia. já adivinhou do meu reconhecimento por toda a captivante e fidalga bondade que me tem dispensado. Eu lhe não posso dizer mais cousa nenhuma e limito-me a curvar-me e a beijar-lhe as mãos, que devem ficar cheias das flores de gratidão que ora lhe envio.

Ernesto Nazareth

Coleção Luiz Antonio De Almeida. Rio de Janeiro;

 

Imagem da carta original de Ernesto Nazareth a Noemia Gama, cedida ao site EN150 por Luiz Fernando Gama Pellegrini, neto de Noemia Redondo do Nascimento Amaral Gama.

 

Na década de 1980, Luiz Antonio de Almeida realizou uma série de entrevistas com Julita Nazareth Siston (sobrinha de Ernesto), Nair Carvalho (filha Gabriella Cruz Fagundes, aluna de Nazareth), e a pianista Maria Alice Saraiva (que conheceu Eulina Nazareth, filha de Ernesto). Destes registros, podemos extrair algumas citações atribuídas a Nazareth:

 

“Duas coisas dão-me imenso prazer: uma pessoa a ouvir-me com reverência e um pianista “desconcertado” ao tentar transpor alguma dificuldade encontrada em minha música!...”

Ernesto Nazareth

Nazareth Siston, Julita. Entrevista concedida a L. A. Almeida. Rio de Janeiro, s/d;

 

“Minhas músicas não foram feitas para serem dançadas; mas, sim, ouvidas!...”

Ernesto Nazareth

Nazareth Siston, Julita. Entrevista concedida a L. A. Almeida. Rio de Janeiro, s/d;

 

“Vendo minhas músicas devido às dificuldades financeiras nas quais me encontro; todavia, o preço que os editores pagam por elas, eu recebo como se fossem bofetadas!...”

Ernesto Nazareth

Carvalho, Nair. Entrevista concedida a L. A. Almeida. RJ, 16 de julho de 1984;

 

“Era apolítico e, certa vez, perguntado a qual candidato a Presidência da República dava seu apoio, na acirrada polêmica que se estabeleceu entre as candidaturas de Arthur Bernardes e Nilo Peçanha [em 1922], ele respondeu:

- Não sou político. Meu mundo é o das notas... musicais!...”

Carvalho, Nair. Depoimento por escrito enviado a L. A. Almeida. RJ, 8 de julho de 1984;

 

“Villa, você está maluco?... Sua música é uma loucura; dela até o Pierrot sai correndo!...”  [após Villa-Lobos tocar algumas de suas novas composições durante uma visita a Nazareth. Pierrot era o fox-terrier de Ernesto]

Ernesto Nazareth

Saraiva, Maria Alice da Silva Pinto. Entrevista concedida ao autor. RJ, 8 de setembro de 1985;

“Mesmo que uma música apresente dissonâncias, não precisa ser necessariamente desprovida de alguma beleza!...[no contexto de seu o tango O Futurista]

Ernesto Nazareth

Saraiva, Maria Alice da Silva Pinto. Entrevista concedida ao autor. RJ, 8 de setembro de 1985;

 

Para finalizar, nada mais apropriado do que ouvir o próprio Nazareth ao piano. Ao todo ele gravou oito músicas: quatro por volta de 1912 juntamente com Pedro de Alcântara ao flautim, e quatro em 1930 ao piano solo.

ca. 1912 (com Pedro de Alcântara, flautim)

Favorito 78-RPM Odeon Record 108.790 

Odeon 78-RPM Odeon Record 108.791 (Matriz XR-1464) 

Linguagem de Coração (de Joaquim Callado) 78-RPM Odeon Record 108.789

Choro e Poesia (de Pedro de Alcântara) 78-RPM Odeon Record 108.788

 

1930

Apanhei-te, cavaquinho 78-RPM Odeon 10.718-a (Matriz 3941) 

Escovado 78-RPM Odeon 10.718-b (Matriz 3939) 

As duas faixas a seguir não foram lançadas na época, por serem takes rejeitados (provás más) pela gravadora. Foram preservadas graças ao musicólogo e pianista Aloysio de Alencar Pinto, que forneceu o acetato único para ser reproduzido no LP “Os Pianeiros” (FENABB 114), lançado em 1986. As gravações a seguir são digitalizações novas feitas pelo Instituto Moreira Salles a partir do acetato original neste ano:

Nenê 78-RPM Matriz 3940-1 

Turuna 78-RPM Matriz 3942-1 

 

Selos de 78-RPMs presentes no acervo particular do musicólogo e pianista Aloysio de Alencar Pinto. Imagens gentilmente cedidas por seu filho Georges Mirault.

 

 

TAGS História, Vida

COMENTÁRIOS

Euler Silva - 23.06.2014

Muito bom Alexandre. Seu trabalho é uma pérola valiosa.

Luiz Carlos Almeida de Araujo - 20.06.2014

INCANSÁVEL

Graças ao seu trabalho, meu incansável Alexandre Dias, Nazareth agora pode ser mais facilmente desvendado e querido por todos. os "mystérios", pouco a pouco, vão sendo revelados de uma forma clara, simples, que permite também aos admiradores - não excluindo, evidentemente, os pesquisadores, grupo no qual também me incluo - uma compreensão mais justa sobre a obra nazarethiana e sobre a figura de Ernesto em si, com lados mais ocultos e facetas mais conturbadas. Nós, os músicos, lhe agradecemos pelo trabalho que você tem feito por mais um injustiçado do nosso Brasil musical.

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