“APANHEI-TE, CAVAQUINHO”, O REMÉDIO QUE CUROU DONALD E ZÉ CARIOCA
Pedro Paulo Malta 26.12.2018
Na obra de Ernesto Nazareth, não há choro mais conhecido do que a trinca “Odeon”, “Brejeiro” e “Apanhei-te, cavaquinho”: músicas que disputam o posto de maior sucesso do pianista, talvez com uma leve vantagem para “Odeon”. Já no exterior, não há a menor dúvida: a mais popular é “Apanhei-te, cavaquinho”, polca de 1914 que foi um dos números musicais do longa-metragem de animação “Tempo de melodia”, produção da Disney lançada em 1948, com o nome original de “Melody time”. Neste filme estão reunidos sete curtas, sendo o sexto deles “A culpa é do samba” (“Blame it on the samba”), musical no qual o Pato Donald e seu amigo brasileiro, o Zé Carioca, são reabilitados de um mal-estar assim que chegam ao Café do Samba, onde são recebidos pelo Aracuã – passarinho amalucado que cura os dois fregueses à base de... samba.
Cartaz do filme / Reprodução: Internet Movie Database
E o “samba” escolhido foi, no caso, a polca de Ernesto Nazareth, aqui rebatizada com o nome do curta, “Blame it on the samba”, e que termina com ares de rumba, assim dançada pelos pássaros recém curados – clique aqui para assistir. A interpretação da música no filme é dividida em duas partes: primeiro cantada pelo trio vocal Dinning Sisters e, depois, tocada por Ethel Smith – organista norte-americana que já conhecia bem a música brasileira desde a temporada de aproximadamente um ano que fez no Copacabana Palace, entre 1941 e 42. É desse período sua primeira gravação de “Apanhei-te, cavaquinho”, lançada em 1942 num disco de 78 rotações da Odeon e relançada em 1946, pela Brunswick, com o nome de “Blame it on the samba”. Clique aqui para ouvir a gravação em disco e as gravações do filme.
Dinning Sisters / Reprodução: Singers.com
O autor da letra cantada pelas Dinning Sisters é o norte-americano Ray Gilbert, que nesta parceria póstuma com Nazareth inaugura sua “obra brasileira”. Nos anos seguintes, ele vai assinar versões como “Ca-room-pa-pa” (“Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), “And roses and roses” (“...Das rosas”, de Dorival Caymmi), “Bahia” (“Na Baixa do Sapateiro”, de Ary Barroso) e “If you went away” (“Preciso aprender a ser só”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle), entre outras. Já na obra de Tom Jobim (seu parceiro brasileiro mais recorrente), são dele os versos em inglês para muitas canções, como “Once I loved” (“O amor em paz”, com Vinicius de Moraes), “Don’t ever go away” (“Por causa de você”, com Dolores Duran), “Dindi” e “Bonita” (ambas com Aloysio de Oliveira). Em meados da década de 1960, Gilbert também passou a editar as músicas de Tom nos EUA, numa relação que desandou quando o brasileiro deixou de confiar no parceiro.
Como letrista, no entanto, o ponto alto de sua carreira veio pouco antes do início fase brasileira. Foi no filme “A Canção do Sul”: lançamento dos estúdios Disney em fins de 1946 que conquistaria o Oscar de melhor canção original, por “Zip-a-dee-doo-dah”, com música de Allie Wrubel e versos de Ray Gilbert. Primeiro sucesso, no qual já se nota uma de suas marcas como letrista: uma certa fixação pelo uso de onomatopeias, como em “I make my money with bananas” (com Aloysio de Oliveira), “Yipsee-i-o” (sem parceiro), na já citada “Ca-room-pa-pa” e também em “Apanhei-te, cavaquinho”, ou melhor, “Blame it on the samba”, em cujos versos ele se aproveita do que supõe serem os sons da cabaça (“chi-chi-chi...”), do pandeiro (“cha-cha-cha...”) e da cuíca (“boom-boom-boom...”).
Blame it on the samba
Ernesto Nazareth e Ray Gilbert
Introdução cantada:
If your spirits have hit a new low
And they long to hit a new high
One little musical cocktail
Will lift them to the sky
Mix a jigger of rhythm
With a strain of a few guitars
And a dash of the samba
And a few melodious bars
And then, and then...
Primeira parte:
You take a small cabassa (chi-chi-chi-chi-chi)
One pandeiro (cha-cha-cha-cha-cha)
Take the cuíca (boom-boom-boom-boom)
You’ve got the fascinating rhythm of the samba
And if guitars are strumming (chi-chi-chi-chi-chi)
Birds are humming (cha-cha-cha-cha-cha)
Drums are drumming (boom-boom-boom-boom)
Then you can blame it on the rhythm of the samba
Segunda parte:
For there is something ’bout the beat you cling to
That’s the type of song you sing to
That’s the kind of thing you swing to
When you get to bouncing with the beat in your feet
But when you’re bouncing to the beat you’re reeling
With the carioca feeling
But if you want to hit the ceiling
Here is all you have to do
“A culpa é do samba” foi a terceira aparição de Zé Carioca no cinema, sempre acompanhado do Pato Donald, assim como nos filmes “Alô, amigos” (“Saludos, amigos”, 1942) e “Você já foi à Bahia?” (“The three caballeros”, 1944), ambos frutos da Política de Boa Vizinhança. Já a gravação de “Blame it on the samba” (a música) deu novo rumo a “Apanhei-te cavaquinho”, que em 1949 ganhou letra em francês (escrita por Jacques Plante para ser gravada pela cantora Rose Mania naquele mesmo ano) e, na década seguinte, teve mais gravações (23 no total) do que as 19 realizadas até então.
A presença de “Apanhei-te, cavaquinho” no filme “Tempo de melodia” foi tema em 2004 de um do texto da pesquisadora Daniella Thompson, intitulado “A culpa é do Walt”: clique aqui para ler em inglês ou aqui para acessar a versão em português, traduzida pelo pianista e pesquisador Alexandre Dias.
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