Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
MARIANA ALVIM
MARIANA ALVIM
Em 1986, encontrei-me com Dona Mariana durante a inauguração desse importante espaço cultural; registrando, poucos dias depois, em entrevista, suas lembranças de Ernesto Nazareth.
Nascida no Largo da Carioca, aos 8 de abril de 1909, Mariana Agostini de Villalba Alvim contava com a idade de oito anos, aproximadamente, quando o compositor tornou-se seu vizinho. Filha de Álvaro Freire de Villalba Alvim e Laura Palha (ou Paglia) Agostini Alvim, veio a falecer em 13 de julho de 2001, em Brasília (DF), cidade que havia adotado há longo tempo e na qual se projetou como pioneira na área da Psicologia. Teve sua formação original de Assistente Social, obtida em 1941, pela antiga Faculdade de Serviço Social do Rio de Janeiro. E seu pioneirismo também se refletiu nas inúmeras entidades que ajudou a criar: Sociedade Pestalozzi do Brasil; Sociedade de Psicologia Individual do Rio de Janeiro; Associação Brasileira de Psicotécnica; Associação Profissional dos Assistentes Sociais do Rio de Janeiro, Sociedade Pestalozzi de Brasília, dentre outras. Em 1928, casou-se com o barítono português João Sampaio Brandão, mudando-se, em seguida, para Paris, onde permaneceu por cinco anos. Retornou ao Brasil em plena ditadura Vargas, e devido à sua militância no partido comunista, sofreu perseguições que levaram-na a se esconder precariamente no interior do Estado do Rio de Janeiro. Nessa mesma época, perdeu seu marido num acidente de avião. Nunca mais se casou. Em 1960, mudou-se para Brasília, tendo sido uma das responsáveis pela difusão da Psicologia na nova Capital Federal. Organizou o Centro de Psicologia Aplicada do Distrito Federal (1961-1962), o Serviço de Seleção e Orientação da Universidade de Brasília, em 1962, e participou da Comissão de Seleção dos Servidores da Universidade. No dia 26 de junho de 1997, recebeu o título de Cidadã Honorária de Brasília, concedido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal. Atualmente, tramita na Câmara Legislativa projeto que se propõe a dar seu nome ao Instituto de Saúde Mental do Distrito Federal.
O senhor (Antonio Coelho de) Magalhães, essa família portuguesa que eu disse a você... Havia uma casa, um terreno baldio, a casinha da família Lobo e depois a do senhor Magalhães. Era uma casa de térreo, um andar superior, tipo palacete. Era bonita, com torreão, uma linda escada na frente, cinza, um cimento aparente, um pouco triste o tom cinza, mas era confortável, boa. Era um casal de portugueses com um filho único, o Gaspar (Coelho de) Magalhães, pintor, que tem quadros lá na nossa Escola de Belas-Artes, na Pinacoteca. Foi até prêmio de viagem, uma vez. Então, eles eram muito nossos amigos, e o senhor Magalhães alugava, geralmente, a parte de baixo. Morava em cima e alugava o térreo. E um dos inquilinos do senhor Magalhães foi a família Nazareth, durante algum tempo.
Minha mãe (Laura Agostini Alvim) era muito musical. Foi discípula, ó meu Deus, de um que tinha nome alemão, Buschmann (Lachmund), parece um nome assim... Que era um professor de piano famoso quando mamãe era menina. Mamãe era muito musical, casou-se novinha, casou-se com 16 anos; mas com 16 anos ela já tocava muito bem. Era muito romântica e foi uma grande intérprete de Chopin... Não fosse ela romântica como era!... Então, quando soube que Ernesto Nazareth era nosso vizinho, começou a ter relações com a família Nazareth e o convidava muito para tocar lá em casa. E ele ia. Mamãe gostava muito dele.
Bailes não. Não havia bailes em nossa casa. Não havia mesmo!... Não era o gênero de meu pai (Dr. Álvaro Alvim). Não havia bailes não. Ele ia pra tocar pra nós, pra mamãe, pra casa. Papai o ouvia quando chegava em casa. Muitas vezes ia de dia, muitas vezes ia até de manhã. Mamãe insistia muito que sempre que ele tivesse vontade de tocar que ele fosse para lá. E ele ia...
Parece que não (tinha piano). Incrível, não é? Coitadinho... Eles tinham muito pouco dinheiro. O pai (Vasco) trabalhava, a filha (Eulina) trabalhava. A filha chegou a ter uma projeção grande nos meios pedagógicos. Ela foi Superintendente de Ensino. Engraçado, eu me lembro muito bem do Diniz e do “Ernestinho”. Lembro bem da Eulina e do velho (Vasco), que usava uma barbinha... Muito digno, muito digno. A família Nazareth é uma família tradicional no Brasil. Ele (Vasco) todo dia passava, sério, pela calçada para pegar o bonde. Naquele tempo era bonde. Quando aparecia um automóvel era coisa rara. Papai teve um automóvel depois, uma Renault, com uma tromba na frente. O bonde era o veículo de todos. Depois, quando papai, muitos anos depois, estava com a radiodermite, ele usava um carro com motorista... Muitos anos depois...
Todo dia (Vasco) saía pra ir pro trabalho. Saía todo mundo. Nazareth não, ele realmente ficava, porque muitas vezes não tinha trabalho. Eu era uma criança e quando cresci é que comecei a ouvir comentários que todos trabalhavam, mas que ele tinha dificuldade de arranjar emprego. Porque nessas casas que vendiam música, Casa Arthur Napoleão e tal... havia sempre um pianista pra tocar pras pessoas escolherem as músicas... Ele trabalhava, parece que ele foi empregado numa dessas casas. Porque é o que ele sabia fazer. Meu Deus, ele conhecia muito de música!...
Ele era um homem tímido, falava baixinho, suave. Olha, eu gostava tanto dele!... Eu como criança, ele me fazia festa, me punha no colo e, às vezes, tocava lá em casa comigo no colo... Mas ele já estava ficando bastante surdo, então abaixava a cabeça pra ele mesmo se ouvir. Me lembro do jeitinho dele fazer tudo assim (inclinado), tudo assim. Eu, então, ia escorregando (do colo dele) e dizia: “ - Tô caindo, tô caindo!...” Ele chegava e eu corria pra ele... Eu gostava dele... Mas mamãe, mamãe gostava, era musicista, de modo que ela via que talento... E não se conformava dele não ser reconhecido!!!
Eu conheci muito bem a Eulina e os dois rapazes. Ela (Theodora Amália) ia, sim, às vezes, com ele lá em casa. Seu Vasco às vezes ia, só à noite, porque durante o dia ele estava no trabalho. Ao passo que o Ernesto Nazareth ia muitas vezes de dia. Às vezes, ele ia só para tocar. Mamãe deixava ele lá, sozinho, tocando... Ele tocava... Ele ia pra tocar pra ele, mas não pra fazer exercícios... Ele ia brincar com o piano. Mamãe gostava de tudo o que ele fazia. Ele, realmente, era uma delícia... “Apanhei-te, cavaquinho!...” Mamãe gostava imensamente, e deixava ele à vontade, para tocar o que ele quisesse.
Mamãe o chamava, “venha tocar, venha, venha...” Às vezes mamãe ficava sentada, outras vezes achava que era “a hora dele”. Eu acho que ele não tinha piano. Mamãe sentia o quanto era importante pra ele ter um piano... Então deixava-o, muitas vezes, sozinho na sala. Ele era um homem fino e meigo. Era um homem manso, falava baixinho, suave... Era uma pessoa suave, caladinho... Ele falava pouco. Não era um homem de muita conversa. Ele era tímido.
Eu era uma criança, mas pensando, hoje, procurando lembrar-me bem dele, tenho a impressão que ele devia ser um grande tímido. Introvertido. Vivia no mundo dele. Num mundo interior...
Foi meu pai quem comprou o piano (Bechstein). Nós tivemos, quando eu era muito pequena, um piano armário (talvez Blüthner) e depois papai comprou aquele (Bechstein). Nazareth tocava nos dois. Ele brincava com o piano. Há alguma coisa de criança nele, de infantil, que acho adorável. Acho que ele era uma alma pura como as crianças, espontâneo.
Eu fiquei muito revoltada dele ter morrido da maneira que morreu, sem nunca ter tido ajuda. Um talento daquele!... Senti muita revolta de ver tantos valores nossos que se perdem por falta de ajuda, o que, felizmente, o nosso Villa-Lobos teve. Se o Guilherme (Arnaldo!) Guinle não tivesse posto Villa-Lobos em Paris, Villa-Lobos era capaz de ter morrido como o nosso Ernesto Nazareth.
Pensei que era uma loucura mansa. Não o conheci nesta época. Era um homem quietinho, manso, vivia no mundo dele. Introvertido, profundamente introvertido. Vivia no mundo dele. Eu pensei que fosse esquizofrenia, mas era paralisia-geral progressiva.
Eu era uma criança e como criança não me deixavam ir lá (na casa do compositor) sem ser acompanhada pela minha babá. Eu, muitas vezes, entrava e dizia assim: “ - Ó, mamãe mandou dizer pro senhor ir lá tocar...” E ele ia... Ah, isso ele gostava!...
Mariana Agostini de Villalba Alvim
ALVIM, Mariana Agostini de Villalba. Entrevista concedida ao autor. Rio de Janeiro, 14 de maio de 1986;
Em livro de Wanda Stylita Cardoso, amiga de Laura Alvim, encontra-se o seguinte depoimento de Dona Mariana a esse respeito.
(...) E por falar em música, tão importante em nossa casa, lembrei-me de Ernesto Nazareth. Eu tinha uns três (nove!) aninhos de idade, era muito pequenina. Ernesto Nazareth e a família dele, mulher, pai, filhos, foram nossos vizinhos durante algum tempo em Ipanema, na praia, cortada pela Avenida Vieira Souto. Ele tinha dificuldades financeiras, tão pobre que era, que não tinha dinheiro nem para alugar um piano. Um homem com esse talento! E nós tínhamos piano em casa. Mamãe, muito musical, que tocava tão bem e fora aluna de Larshmond (Carlos Lachmund) quando mocinha, não se conformava em ver aquele talento que era Ernesto Nazareth abandonado, coitadinho, lutando tanto para sobreviver. Ela então o convidava freqüentemente para estudar lá em casa. Ele ia e ficava horas tocando, compondo em nosso piano. (...) O mais estranho é que esse homem, que sofreu tanto em vida, incompreendido pela própria família, tenha uma música tão alegre. A música de Ernesto Nazareth é jovem, é brejeira. Brejeiro é o nome de um de seus tangos, que é brejeiro mesmo. (...) Recordar é bom!...
Mariana Agostini de Villalba Alvim
CARDOSO, Wanda Stylita. Laura Alvim, anjo barroco. Editora Rosa dos Tempos. Rio de Janeiro, 1997;