Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
EUSTÓRGIO WANDERLEY
EUSTÓRGIO WANDERLEY
O QUE É NOSSO
ERNESTO NAZARETH
O REI DO TANGO BRASILEIRO
Não é possível falar d’“o que é nosso” sem lembrar o velho pianista Ernesto Nazareth, com razão cognominado - o rei do tango brasileiro. Jardim Sul América, em Laranjeiras, n. 76, apartamento 146. Declinamos o fim da nossa visita e emquanto aguardamos na elegante “sala de estar” do artistico apartamento a vinda do maestro, avisado da nossa presença alí, palestramos com a sra. Eulina Nazareth, sua filha.
- Meu pae vive aqui muito retraido, raramente vae á cidade. Passa o tempo escrevendo suas musicas ou as executando ao piano. O piano estava, realmente, aberto e, a um canto da tampa do teclado, um cartão de prata com os seguintes dizeres: “Ao illustre compositor Ernesto Nazareth seus admiradores de S.Paulo. Julho de 1926”.
- Esse piano foi um presente que lhe offertaram quando elle esteve lá ha uns quatro annos. Ernesto Nazareth apparece bem disposto, physionomia jovial.
- A que devo a honra dessa visita? Vivo agora aqui tão esquecido...
- Nem tanto, e a prova de que não o esquecemos é estarmos aqui para o ver e ouvir.
- A respeito de musica?
- Sim, d’“o que é nosso”, da nossa musica...
- Que hei de dizer?
- Isso esta hoje muito differente. Ouço ás vezes musicas de “fox-trots” que dizem ser brasileira, porém que de brasileira nada têm. É a musica dos “novos”... Rapazes de coragem, hein?...Os antigos, como eu, ficaram no canto.
- Nunca mais tocou em publico?
- Aqui não. Ha uns dez ou doze annos toquei na sala de espera do antigo cinema Odeon com uma boa orchestra. E muita gente pagava entrada sómente para ficar ali ouvindo minhas musicas, meus tangos; não fazia questão de ir ver a fita. A ultima vez que toquei em concertos foi ha quatro annos em S.Paulo.
Um meu amigo, o Camaz, sempre instava para que eu fosse a S.Paulo, dizendo-me que minhas composições eram muito procuradas ali e meu nome bastante popular tambem. Tanto insistiu para que eu fosse dar ali uma audição das minhas musicas, que eu fui. Receberam-me carinhosamente. Depois eram tantas as visitas, os convites para festas, passeios aos pontos pittorescos da cidade, que eu comecei a desconfiar de que tinha mesmo algum merecimento... Um grupo gentil de moças organizou uma festa em que muitas tomaram parte declamando lindos versos e em que eu executei minhas musicas. A gentileza e generosidade dos meus bons amigos de S.Paulo culminaram com a offerta desse piano.
- Se não lhe causasse incomodo, poderia o maestro ter a bondade de executar algumas das suas mais recentes composições?
- Pois não. Com prazer.
Sentando-se ao piano todo elle se transfigura. O aspecto melancolico que tinha ao recordar, saudoso, sua triumphal visita a S.Paulo foi substituido por uma expressão natural de alegria.
E começou a tocar...
Numa revoada cascateante de sons perspassaram pelo teclado os novos tangos: “Cruzeiro”, “Paulicéa, como és formosa”, por fim “O Futurista”, que offerecemos aos nossos leitores por nimia gentileza do autor. Ouvindo essa musica disse um dos nossos mais apreciados maestros:
- Fez bem chamando-a “O Futurista” pela estranheza de certas dissonancias muito bem achadas.
- E dos antigos não nos faz ouvir nenhum? Perguntamos-lhe.
- Se tem prazer nisso é fácil.
E o rythmo “gingante” do “Brejeiro” espalhou-se pela sala. Seguiram-se-lhe “Nenê”, “Bambino” e “Plangente”... Evocando o passado estava elle, curvado sobre o marfim das teclas como para ouvir melhor aquellas harmonias executadas, ás vezes, num suave “pianissimo” que ia num progressivo crescendo até ao “forte” energico, com bravura. Estava commovido até as lágrimas.
É preciso notar que os tangos de Nazareth não têm rythmo dolente, quasi morbido, dos tangos argentinos. Participam mais das “habaneras” cubanas, têm as syncopes da dansa crioula de Havana e não raro, o “affretamento” das quialteras.
- Se não está cansado, disse elle, ouça uma valsa de que o saudoso barytono Larrigne (sic) De Faro muito gostava e que, como não tivesse título, elle baptisou por “Elegantissima”. Eu disse que bastaria chamal-a “Elegante”, se elle assim a achava; porém, De Faro respondeu que a baptisava por “Elegantissima”, em vista de não haver um outro superlativo ainda “mais absoluto...”
Executou-a ao piano. As phrases eram realmente muito elegantes, o desenho melodico simples, porém de um encadeamento perfeito.
- Quem foi seu mestre? Perguntámos.
- Não tive. Comecei a estudar com a minha mãe que era uma eximia pianista. Aos onze (!) annos fiz minha primeira composição, uma polka. Ainda me recordo della. Era assim... E executou sua primeira composição, uma musica saltitante, alegre, já deixando entrever como seria as mais que lhe succedessem.
Desejamos ouvil-o tocar mais outras musicas suas, porém receiavamos fatigal-o. Isso mesmo dissemos á sua digna filha.
- Não tenha receio; nos tranquillizou ella. O papae é resistente como o vovô.
- Como? Ainda vive o pae delle?!
- Pois não. Está com 93 annos e ainda trabalha, diariamente, como ha 60 annos passados, na Alfândega, onde é despachante.
Nesse momento a sra. Maria das Mercês (sic), que havia saido da sala por alguns momentos, voltava dizendo:
- Fui chamar o “nosso vôvôzinho”, que ahi vem.
Com effeito surgiu na porta a figura sympathica do sr. Vasco Nazareth, firme, aprumadinho, não parecendo ter mais de 50 e 60 annos.
Felicitamol-o por isso.
- Qual nada! Protestou elle sorrindo. Estou muito acabado, cansado. Imagine que somente na Alfândega trabalho ha 67 annos. Estou muito velho...
- Não diga isso, porque muitos moços de hoje invejam os seus 93 annos sadios e uteis.
Era tempo de nos retirarmos.
Agradecemos a gentileza do acolhimento e nos despedimos.
Descendo a rua ouvimos ainda sons de piano. Reconhecemos a musica: era o tango “Espalhafatoso” que Ernesto Nazareth executava na continua evocação do seu passado de glorias. Commovedora evocação...
Eustórgio Wanderley
CORREIO DA MANHÃ. Ernesto Nazareth, o rei do tango brasileiro (“O que é nosso”). Eustórgio Wanderley. Rio de Janeiro, 15 de junho de 1930.