Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
A PRIMEIRA ENTREVISTA EM SÃO PAULO (1926)
A PRIMEIRA ENTREVISTA EM SÃO PAULO (1926)
Ainda nesse mesmo 2 de junho, o “Diário de Notícias” publicou matéria com Ernesto Nazareth que, sem dúvida, seria um dos mais importantes registros deixados pelo pianista. Inclusive, devemos observar o seguinte:
a) As palavras de incentivo de Catullo que saíram na “Gazeta de Notícias”, em data não identificada: Não vacille. Vá. Tenho confiança no seu talento e plena confiança na grande alma e grande cultura dos paulistas. Quem lhe disser que a platéa é fria, ou mente por mentir, ou foi um blóco de gelo que cahiu numa fornalha desfazendo-se todo.
b) As referências a Luigi Chiaffarelli: O maestro Chiaffarelli, tendo abandonado o Rio de Janeiro sem conseguir despedir-se de mim, fez-me, por intermedio de d. Antonietta, presente de uma linda cigarreira com meu nome gravado, a qual guardo como uma das minhas reliquias. Depois disso, as vezes que elle me escreveu aconselhando-me a vir para S.Paulo foram innumeras. Antes de qualquer coisa, devemos entender que ao deixar de presente uma cigarrilha de prata ao colega, Chiaffarelli demonstrou alta classe e elegância. Depois, ao dizer, Nazareth, que este lhe escrevera inúmeras vezes aconselhando sua ida a São Paulo, só prova a grande admiração cultivada pelo italiano. Se Chiaffarelli não reconhecesse em Nazareth algum valor tanto em sua condição de intérprete quanto de autor, jamais lhe mandaria nem mesmo um cartão postal.
c) As célebres intérpretes: Autor de mais de trezentas composições de valor comprovado, admiradas e executadas muitas dellas por autoridades como Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Autonietta Rudge Miller, e outras, Ernesto Nazareth tornou-se um nome popular em todo o Brasil. Primeiramente, as composições de Nazareth não ultrapassaram 212. Guiomar Novaes tocava Nazareth somente em reuniões de fórum íntimo; Magdalena Tagliaferro, procurada por mim, sessenta anos depois da publicação desse artigo, disse-me que Nazareth era um músico admirável, não confirmando, entretanto, se chegou a interpretar alguma de suas obras; Antonietta Rudge-Miller, que foi casada com o grande responsável pela introdução do Futebol no Brasil, o inglês Charles Miller, e depois com o escritor Menoti Del Pichia, talvez tenha sido, entre as três, a maior pianista nascida no Brasil, mas seguiu uma carreira mais doméstica que internacional.
O CREADOR DO TANGO BRASILEIRO
ERNESTO NAZARETH FALLA AO “DIARIO DA NOITE”
Ernesto Nazareth é um notavel compositor brasileiro a quem ninguem nega o titulo que merecidamente lhe é dado de “rei do tango”.
Foi elle quem, desde que os seus dedos espertos se familiarisaram com as teclas do piano, se preocupou em crear essa musica tão nossa, ao som da qual se acertaram immediatamente os passos do maxixe, dansa que a tornou popular. Desde que Nazareth, estylisando a polka, dando-lhe um cunho essencialmente nacional, creou o tango, todos os maxixes, chulas e sambas carnavalescos não têm senão repetido, embora de uma fórma mais simples, as mesmas phrases, os mesmos motivos, que a alma popular brasileira consagra e o povo recebe com bôa disposição para cantarolar por toda parte, a qualquer momento e em quaesquer circumstancias.
Informações de Catullo Cearense
Há já alguns dias que Ernesto Nazareth está entre nós. É a primeira vez que sáe de sua terra natal - São Sebastião do Rio de Janeiro. Com quanto receio não aportou a estas plagas desconhecidas! Há já bastante tempo que Nazareth planejara tal viagem. Diziam-lhe, porém, que a platéa de S.Paulo era demasiadamente exigente e parcamente exteriorisava os seus sentimentos... Por isso, sempre vacilou.
Catullo Cearense deu-lhe, porém, informações mais agradaveis da Paulicéa e aconselhou-o, ultimamente, pela “Gazeta de Noticias”:
“Não vacille. Vá. Tenho confiança no seu talento e plena confiança na grande alma e grande cultura dos paulistas. Quem lhe disser que a platéa é fria, ou mente por mentir, ou foi um blóco de gelo que cahiu numa fornalha desfazendo-se todo. Não quero dizer mais nada, porque não desejo arrebatar a surpreza da cultura paulista, quando lhe ouvir, maravilhada, as maravilhosas composições em que a sua alma canta com todos os gorgeios da passarada do Brasil.”
Paulicéa! Como és formosa!
Estando em S.Paulo, não podiamos deixar de ouvil-o. Recebeu-nos Ernesto Nazareth com a maior amabilidade, na residencia do sr. Jacyntho Silva, onde se acha hospedado com o maior carinho e rodeado de uma atmosphera de amizade sincera e dedicada, como elle proprio confessou.
Nazareth é a modestia personificada. Chega a ultrapassar as raias do commum, o acanhamento que seu semblante immediatamente revela ao ser obrigado a se referir a si proprio.
- Sou da Capital Federal - declarou-nos - e é a primeira vez na minha vida que ponho o pé fora de lá. S.Paulo me tem encantado de uma maneira irrelatavel. O circulo de amigos que em redor de mim logo se apresentou é grande. Bem maior do que o que mantenho no meu socegado recanto de Ipanema. Pretendo realisar algumas audições em Santos, Campinas e nesta capital. Realisarei antes, porém, uma audição especial para a imprensa em dia opportunamente fixado.
Mas... nunca pensára antes em vir a S.Paulo? - interrompemos. Com ar de quem procurava lembrar-se de um facto não mui remoto, o velho musico nos respondeu:
Há poucos annos, quando Antonietta Rudge Miller realisou um concerto no Rio de Janeiro, lá estiveram tambem, para assistil-o, o fallecido professor Chiaffarelli e o professor Cantù. Recebi então um convite para me fazer ouvir pelos tres, na pensão em que estavam hospedados. Timido embora, executei, com o cuidado que a presença dos mestres exigia, uma série dos meus tangos, que os encantou deveras. A um dado momento d. Antonietta me disse: “Sabe que eu também toco alguns dos seus tangos?” Com que alegria e prazer não ouvi, executado por mãos que honram, o meu “Nenê”?!...
O maestro Chiaffarelli, tendo abandonado o Rio de Janeiro sem conseguir despedir-se de mim, fez-me, por intermedio de d. Antonietta, presente de uma linda cigarreira com meu nome gravado, a qual guardo como uma das minhas reliquias. Depois disso, as vezes que elle me escreveu aconselhando-me a vir para S.Paulo foram innumeras. Eu, porém, pobre e mal ganhando para o meu sustento e de minha gente, não podia pensar em tal. Afinal, depois de tantos annos, realisei agora a minha viagem e os dias que aqui tenho passado serão para mim inolvidaveis. Consagrei-os já numa composição, ainda no prelo, a que intitulei: “Paulicéa, como és formosa!”
Algumas horas deliciosas
Sentando-se ao piano, a nosso pedido, Ernesto Nazareth executou o seu tango “Paulicéa, como és formosa!”, com aquella agilidade peculiar aos seus dedos e com aquella firmeza que as musicas do genero requerem. A melodia delicada e harmoniosamente desenvolvida encerra bellezas que a nossa capacidade artistica mal podia perceber, mas que o nosso coração entendia perfeitamente como emanação sincera de um outro coração grato á terra e á gente que o fazia pulsar de alegria. Depois de “Paulicéa, como és formosa!”, Nazareth soube nos proporcionar agradaveis momentos, executando as suas musicas de maior sucesso.
“Brejeiro” - tango que pelo seu caracter eminentemente popular foi cantarolado por toda a gente, nos fez reviver tempos passados, ao mesmo tempo que nos deu plena consciencia do presente, conservando-nos o seu saltitante rythmo compassado mais acordados do que nunca. Assim tambem o “Odeon” e o “Turuna” executados com aquella habilidade do autor, fez nascer dentro de nós um quê mysterioso que ao mesmo tempo que impellia o nosso corpo para a dansa, retrahia a nossa alma para dentro de si propria num silencio voluntario, a se embalar na rêde melodiosa de sons, tecida pelos ageis dedos do artista.
Passaram-se os segundos, os minutos, as horas, deliciosamente, nas quaes Nazareth tocou ainda: “Carioca”, tango; “Passaros em festa”, valsa delicadissima que nos faz realmente sentir a passarada de nossa patria a saudar o sol pela manhã; “Plangente”, tango estylo habanera; e um mimo de delicadeza “Corbeille de Fleurs”, gavotta formada por uma successão de notas - flôres - enfeixadas e artistica e harmoniosamente dispostas pela inspiração ardente do artista. O “Batuque”, executado em ultimo logar, deixou optima impressão no nosso espirito. Henrique Oswaldo fez questão que essa composição de Nazareth lhe fosse offerecida. Aliás, o seu proprio autor manifestou-nos o desejo de executal-a em publico, incluindo-a no programma de um de seus recitaes.
Caminho de flores e espinhos
Ernesto Nazareth teve como sua primeira guia, no teclado do piano, a sua propria mãe. Mais tarde, sentindo quéda para a arte tomou, como professor, a Lucien Lambert que, tendo que regressar a Paris, ministrou-lhe apenas oito lições. Desde então, Nazareth caminhou sósinho.
Autor de mais de trezentas (sic) composições de valor comprovado, admiradas e executadas muitas dellas por autoridades como Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Autonietta Rudge Miller, e outras, Ernesto Nazareth tornou-se um nome popular em todo o Brasil. A primeira musica brasileira introduzida em Paris, era de sua lavra. O seu maior merecimento é o de não se ter deixado contagiar pelas vibrações dissonantes da influencia extrangeira, no turbilhão desenfreado da “jazz-band”. Finalmente, Nazareth é o compositor do “Apanhei-te, cavaquinho!”, musica executada sempre com grande successo pela banda de marinheiros nacionaes, em terras extrangeiras e apresentada como producto genuinamente nacional.
DIÁRIO DA NOITE. São Paulo, 2 de junho de 1926;