Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
CARTA AO “ALMIRANTE”
CARTA AO “ALMIRANTE”
Em meados da década de 1940, chegou às mãos do cantor, radialista e pesquisador da música brasileira, Henrique Foréis Domingues, o “Almirante”, carta de autoria não identificada, contando um pouco da passagem de nosso biografado por Campinas. Vamos a ela:
Caro Almirante
Saudações
Vou contar-lhe uma página da vida de Ernesto Nazareth, que talvez possa interessá-lo e ficar em seu repositório sobre a vida dos nossos grandes musicistas patrícios.
Há uns vinte anos passados Nazareth esteve em S.Paulo, já velho, um tanto surdo e talvez mais pobre do que nunca. Rosado, pequeno, de cabelos alvos, constituia uma surpreza para todos que supunham o autor de tantas músicas populares, de tipo diverso.
E ele foi a Campinas.
Ignorava Campinas como ignorava S.Paulo - sabia que existia Brasil além do Rio de Janeiro, mas não acreditava muito no que pudesse haver para além dos subúrbios da Central e da Leopoldina...
Descendo a terra de Carlos Gomes, foi no Prefeito Orozimbo Maia - de saudosa memória, e lá soube que o mesmo era presidente do velho e fidalgo Club Campineiro. Disse ao Prefeito o que pretendia. Dar um concerto de piano com músicas suas.
Orozimbo Maia era assim uma espécie de Barão do Rio Branco, até na estampa um tanto brusco, excelente administrador, mas um coração todo bondade. Não entendia de músicas, não sabia que no mundo havia um Nazareth, porém ouviu-o com bondade e simpatia no velho “Palácio dos Azulejos” e concordou em que se desse uma audição aos sócios do Club.
- Quando quer ir dar-nos o seu concerto e quanto será a contribuição que lhe daremos?
Nazareth marcou a data e pediu uma insignificância mesmo para a época - duzentos mil réis.
O Prefeito concordou e disse-lhe - mandarei buscá-lo à noite no hotel.
Nazareth voltou alegre para o seu alojamento no Hotel do Oeste. À entrada falou com a senhora do proprietário.
- Não haverá por ai um pianinho em que eu me exercite para o concerto que vou dar?
Existia um, excelente, nos aposentos particulares, pois que a mocinha filha dos donos estudava com mestres e era pianista.
Franqueado o instrumento, Nazareth esqueceu-se de tudo, sentiu-se só no mundo das melodias. Conta uma testemunha sua num dos dias em que ele esteve no Hotel, supondo-se só, principiou a recordar o Odeon e murmurou: onde será que eu achei esta frase tão linda?
À noite do concerto marcado ele, metido em seu “smocking”, gardênia na lapela, viu à sua espera a “limousine” da Prefeitura, toda iluminada, o ajudante de “chauffeur” à porta, fardado de boné a mão - O sr. Prefeito manda buscar - sr. maestro Ernesto Nazareth. De surpreza em surpreza foi recebido com palmas pelo auditório no belíssimo salão de festas, onde um piano de cauda o esperava. Ele, que ignorava Campinas, teve mais um encanto de saber-se conhecido e apreciado na “cidade das andorinhas”. Teve uma consagração, palmas, cumprimentos, abraços, felicitações e em seguida mais meia dúzia de concertos na cidade, em outras sociedades. O prefeito gratificou-o com um envelope contendo muitas vezes mais o estipulado. As suas músicas de novo editadas vendiam-se como “pipocas”... E ele numa roda de “velhos novos amigos” confessara:
- Nunca pensei que S.Paulo fosse assim. Tenho os dedos feridos e com estes esparadrapos de tanto tocar, tenho mais contratos e novos editores. Por quê não vim a S.Paulo antes? Sabe - deram-me um piano eu não quis o de cauda... Não me caberia em casa... Nunca tive um piano meu... Agora!
Pouco tempo depois ele morria em Jacarepaguá! (fugitivo de um hospital de loucos) - Em Campinas, como em toda a Paulicea, celebramos com saudade aquele que Rubinstein admirou e não se desmereceu em interpretar também.
Do amigo e leitor - Paulista sem nome.
ARQUIVO ALMIRANTE - Museu da Imagem e do Som (MIS). Rio de Janeiro;
Comentando esta carta com Dona Julita, sobrinha do compositor, perguntei a ela o porquê de o compositor não ter aceitado o piano de cauda.
Todo mundo também perguntava isso a ele. E tio Ernesto, brincando, respondia que se tivesse ficado com o de cauda, teria que por alguém de casa para fora, a fim de sobrar espaço para o piano!...
Julita Nazareth Siston
NAZARETH SISTON, Julita. Entrevista concedida ao autor. RJ;