Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
BRÍCIO DE ABREU
BRÍCIO DE ABREU
Em 1963, ano do centenário de Ernesto Nazareth, saiu artigo do jornalista e escritor Brício de Abreu apresentando suas impressões a respeito de nosso artista. Já no penúltimo parágrafo, o autor nos faz saber do seu interesse em ler uma antiga reportagem com o pianista, publicada pela Folha da Noite, de São Paulo, e escreve: “(...) procurarei e ainda hei de ver o que diz essa entrevista. Em todo caso, aqui fica a indicação aos rebuscadores.”
Conheci-o em 1924. O nosso grupo de boêmios e jornalistas, semanalmente, reunia-se em casa do Dr. Bandeira de Gouvêia, na Rua Buarque de Macedo. Eram reuniões de poesia, canto e ternura. Nascimento Filho (barítono), Lulu Vidal (o Barão), Thedim Lôbo, Gomes Leite (poeta que morreu moço por atropelamento), Carlos Frederico da Silva, Agenor Chaves, às vezes Moacyr de Almeida (meu companheiro em “A Tribuna”), Afonso Lopes de Almeida, Álvaro Guanabara, Cláudio Manuel e tantos outros. Uma noite, Mme. Bandeira de Gouvêia apresentou-nos Ernesto Nazareth. Cabelos grisalhos, já penteados da direita para a esquerda, tal como vemos na foto de 1926, gordo, de estatura mediana. Foi uma noite memorável, em que Nazareth tocou várias de suas músicas, só parando para ceder lugar a um brasileiro magro, esquálido, de nome alemão, que morava lá em Santa Teresa, e que era louco por música popular. Foi a única vez que tive contacto com o mestre que falava calmo e simples, e que era de uma modéstia que impressionava. Lembro-me de que Agenor Chaves, num grupo que formamos em redor do mestre, perguntou-lhe como iniciara a sua vida de compositor. Nazareth sorriu e timidamente contestou:
“ - Detesto falar de mim. Mas, se quer saber alguma coisa a meu respeito e o que penso, aqui tem uma entrevista que me arrancaram, à força, na semana passada, para a ‘Folha da Noite’, de São Paulo.”
E, tirando do bolso uma folha de jornal, dobrada, deu-a a Agenor Chaves. Nos meus apontamentos consta: “...como estamos a 28 de setembro de 1924, o artigo deve ter sido publicado na segunda semana deste mês. Vêr em São Paulo”. Nunca pude fazê-lo, mas quando for à capital paulista, procurarei e ainda hei de ver o que diz essa entrevista. Em todo caso, aqui fica a indicação aos rebuscadores.
A impressão que nos ficou daquela noite foi imensa e ainda dura até hoje. Nazareth não se parecia com nenhum outro pianista quando tocava. E, creio que freqüentávamos todos os que eram conhecidos e populares, naquela época.
Brício de Abreu
CRUZEIRO (O). Brício de Abreu. Rio de Janeiro, 1963;
Se Brício de Abreu, algum dia, conseguiu ler a tal entrevista com Ernesto Nazareth, jamais saberemos. Contudo, eu a encontrei. Vamos a ela:
FLOR AMOROSA DE TRÊS RAÇAS TRISTES
O QUE DIZEM A “FOLHA” OS TRÊS MAIS POPULARES
COMPOSITORES BRASILEIROS
O PERFIL DE NAZARETH
Numa tarde de Agosto último, o acaso reuniu, num canto da rua do Ouvidor, os tres mais populares dos nossos compositores: Souto, Nazareth e Tupynambá. Foi no estabelecimento musical de propriedade do primeiro, apesar de também se negociar alli artigos photographicos. A hora baça do crepusculo inutilizou a lembrança de se bater uma chapa, flagranteando o encontro. Em todo caso, restava o recurso do lapis de Paim, que soube tão bem penetrar o perfil de Nazareth, emquanto este analisava a opulencia dos seus rythmos, do seu dedilhado, nesse modelo de dansa caracteristica que é o “Apanhei-te, cavaquinho!”
Fixadas as physionomias, tentou-nos apanhar as ideas dos tres.
Nazareth é surdo. O barbarizo atordoante de fora, da rua, sonorizada pelas ondas dos passantes e pelo som moido dos realejos dos mendigos, rolava até á pequena sala onde conversavamos, difficultando-lhe a participação na palestra. Tambem a timidez não lhe solta a lingua. É regra geral que os surdos fallam baixo, como para demonstrar a terceiros, por uma especie de pudor ironicamente explicavel, que ouvem distinctamente o que os menos discretos lhes berram aos ouvidos. Nelle, porém, não é só isso o que o obriga a fallar num quasi murmurio: é a modestia, a modestia legitima, laivada de uma desconfiança infantil pelo que possa valer.
- Um critico francez chamou-o genial. O senhor leu essa referencia ao seu nome? - indagámos em voz alta, encostando a bocca ás suas faces sanguineas, roçando-lhe as mechas de cabellos brancos. Elle fez um gracioso amuo:
- Ah! Já sei... Não sei por que... Eu não mereço nada disso.
- Quando nasceu? - prosseguimos.
- A 20 de Março de 1863.
- Tem então...
- Sessenta annos.
- Pois não parece. Está ainda bem forte.
É de facto. Sua radiosa apparencia de saude engana o calculo que se lhe faça da idade. Depois, quem o vê tocar e attenta na prodigiosa articulação que elle desenvolve ao executar os seus maxixes, determinadamente inçados de effeitos difficilimos de conseguir, e a que a agilidade electrica de suas mãos accrescenta imprevistos floreios, tão ao sabor dos “choros” cariocas, para logo se convencer de que um sangue jovem ainda os anima.
Ao louvor que lhe fizemos ao virtuosismo, elle torna a contrapôr um agradecimento acanhado:
- É herança de minha mãi. Minha mãi chegou a causar admiração aos professores de sua época, sem nunca ter tido mestres. Digo herança, porque eu tambem me fiz autodidacta, é certo que por força das circumstancias. Lições, só recebi oito na vida, as de um professor francez que, durante a minha mocidade, viveu aqui no Rio de Janeiro. Tambem, depois disso, nunca mais tive quem me ensinasse a tocar, e muito menos a compor. O que me valeu e continúa a valer de muito são os exercicios continuos que faço. Dois annos passei martellando de noite o piano de um club e dei graças por ter, desse modo, um instrumento á minha disposição...
- Então o seu primeiro cuidado era possuir um instrumento - interrompemos, admirados.
- Se era! - frizou elle, com uma ponta de azedume. Passei oito annos sem ter piano. O senhor talvez não calcule o que representa isso para um homem fascinado pelo piano. Parece castigo, não é? Hoje em dia consigo tocar muita cousa classica, mas exclusivamente pelo meu proprio esforço.
- E as composições? Não lhe tem auferido lucros?
- Lucros? Eu vivo de liccionar, pois de outra forma não ganharia a vida.
- Bem. E quantas composições conta ate hoje?
- Mais de duzentas. A primeira foi uma polka, a que dei o titulo de “Você bem sabe”. O senhor de certo não conhece... É... Já faz muito tempo...
- Mas qual é a sua composição predilecta?
- Ah!... Isso é que não póde ter resposta definitiva, assim á queima-roupa... Gosto de algumas... Lembra-se do "Brejeiro"?
- Como não?
Ai, ladrãozinho! Dos teus labios de coral. (Tem dó!)
Dá-me um beijinho! Não te póde fazer mal. (Um só!)
- Todo o Brasil canta isso - concluiu elle num sorriso.
FOLHA DA NOITE. O perfil de Nazareth. São Paulo, 8 de setembro de 1924;