Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
GASTÃO PENALVA (1934)
GASTÃO PENALVA (1934)
ERNESTO NAZARETH
O grande artista, morto de hontem, foi uma das mais legitimas e espontaneas manifestações da musica brasileira. A sua arte foi só sua. Não teve imitadores. Nem ninguem, por mais perfeito, podia tocar como elle aquellas composições famosas que o fizeram rei do tango. Não era simplesmente a musica desataviada, sem expressão, inspirada de motivos avulsos que por ahi anda com o rotulo de musica indigena. Eram, ao contrario, paginas de subito merito, onde uma technica de pulso rivalizava com uma inspiração de genio. (...) Mas os seus tangos fizeram sucesso. Fizeram época. Toda a gente, bem ou mal, tangeu ao piano o “Brejeiro”, o “Escovado”, o “Nenê”, o “Chave de Ouro”. Muita menina de arrabalde passava horas a arranhar os compassos romanticos da “Corbeille de fleurs” e do “Coração que sente”. Antes do advento do cinema e do radio, quando ainda havia bailes familiares, com pianistas alugados que moviam a festa, como motores infatigaveis, os tangos de Ernesto Nazareth eram reclamados como hoje se reclamam, aos berros, nos salões plethoricos, os “fox-trots” e os sambas carnavalescos. E ás vezes muita gente deixava de dansar só para ouvil-os, extasiar-se com o seu entrecho puramente brasileiro, onde a nossa terra, a nossa gente, as nossas cousas sadias reflectiam natureza e sertão, aguas cantantes nos descampados verdes, rondas de aves buliçosas a enredar plumagens entre as lianas sylvestres, caboclas de olhos de aço no amplo saracoteio desnalgado dos cateretês matutos, e o que temos de mais bello e mais nosso, naquella éra nacional em que o americanismo não nos tinha entrado, porta a dentro, com seus modos estabanados, as suas risadas boçaes, a sua feição grosseira de tratar o bello sexo. A música de Nazareth imperou, nas nossas salas, ao tempo em que uma dama era uma dama e um cavalheiro um cavalheiro. Ella mesma, porque era arte pura, talvez se sentisse melindrada ao vêr o descalabro social com que hoje se tira uma moça para dansar e ao fim da dansa se a abandona em qualquer parte, como objecto imprestavel. Eu creio que a ultima casa em que Nazareth tocou foi a minha. Encheu-nos uma tarde de prazer artistico. Eramos poucos. Brasilio Itiberê e Andrade Muricy, dous melomanos inveterados, tinham levado, para conhecer o maestro, o maior pianista de Hespanha e um dos maiores do mundo: Tomás Terán. E este, emquanto o nosso tocava, puzera-se a seu lado, alheio ao resto, lapis em punho, a annotar uma collecção das suas musicas, com os labios entreabertos de espanto, como a dizer-nos a nós de casa: - E vocês que não conhecem este homem! - E vocês que não entendem esta musica! E de tal fórma se impressionou que, por fim, instado para dar-nos alguma cousa do seu repertorio, declarou formalmente: “ - Não! A tarde é de Ernesto Nazareth. Ninguem mais deve tocar depois delle.” E partiu com a collecção de tangos cheia de pontos de admiração. Mais tarde, o grande amigo foi fazer uma excursão pelo Sul. Varias platéas applaudiram com fervor o seu canto de cysne. Elle já não ouvia mais o que tocava. Sabia das suas composições unicamente pela memoria visual, gravada na fórma geometrica do teclado. Completamente surdo, como Beethoven na noite de “Fidelio”. Voltou. Estava com o juizo transtornado. A familia internou-o num manicomio. Passou-se muito tempo. Nunca mais tive noticias delle. Até que lhe remata a vida ingloria um final de tragedia. Fugira do sanatoro. E, afinal, elle que já estava louco, foi encontrado sem vida, com o corpo apodrecido. Pobre, desventurado amigo! Acabou na dissonancia aquelle espirito que só deu belleza á vida, á vida que se esqueceu de lhe pagar ou só lhe pagou com moeda falsa. Mas, senhores, no estado em que vae a arte em nossa terra - desprezada, negada, constrangida a viver na miséria - o artista só tem mesmo uma porta de saida: enlouquecer.
Gastão Penalva
EXCELSIOR. Ernesto Nazareth. Gastão Penalva (Sebastião Fernandes de Sousa). Rio de Janeiro, março de 1934;