Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
ASSIS MEMÓRIA (1924)
ASSIS MEMÓRIA (1924)
Assis Memória foi padre, jornalista e escritor. Nascido em Guaraciaba, no Ceará, por volta de 1880, exerceu o sacerdócio no Maranhão e no Rio de Janeiro, ingressando, inclusive, na Academia Carioca de Letras, na década de 1930. Foi colaborador assíduo do Jornal do Brasil e autor do livro “Memória de uma cura”. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro depois de 1954, pois aos 27 de fevereiro, desse ano, vemos publicado, no jornal supracitado, nota sobre a celebração de uma missa em sufrágio da alma do Conde Pereira Carneiro, celebrada por Dom Jaime de Barros Câmara, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, e pelos cônegos Olímpio de Melo e Assis Memória.
Em outubro de 1924, encontramos um simpático artigo escrito pelo Padre Memória para a revista Careta, transcrito em seguida.
O professor Ernesto Nazareth é um eremita da arte, um solitario de Apollo. Cada dia escasseam, na vida prosaicamente yankee de hoje, esses homens superiores que, devotados a um ideal de sciencia ou de esthetica, para melhor o servirem, afastam-se do tumulto improductivo das ruas, do trottoir das avenidas, das causeries dos clubs e dos salões elegantes. Quer isso dizer que, afora os monges da Igreja, esses privilegiados para quem a solidão com Deus é um paraiso, poucos conhecemos, agora, que, cenobitas de outro credo, se enclausurem na estreiteza de uma casa, ou se enterrem vivos no deserto de si proprios.
- Não sei quem creou no nosso vernaculo o significativo verbo ensimesmar.
Quem quer que tenha sido, acertou, á maravilha, no neologismo, mas, na frivola epocha que corre, perdeu o seu tempo, porque o vocabulo ficou sem consumo, a expressiva palavra p’ra ahi se petrificar sem applicação. Na verdade, quem é que hoje se “ensimesma”, na accepção pura do termo?!
Quem se detem na vertigem da empolgante existencia moderna, para, um momento siquer, cahir a fundo sobre si mesmo, examinando-se, consultando a propria alma, ouvindo pulsar o proprio coração, elevando-se a um mundo menos material, pairando num ambiente mais salutar, descortinando das alturas horizontes menos restrictos?!
Quem?!
- Poucos, bem poucos, muito raros, sem duvida. E esses poucos, e esses raros, por isso que o são, merecem applausos, porque, quasi sempre a reclusão, á que se consagram, é fecunda; o silencio, a que se votam, é precioso. Há - felizmente ainda há! - os monges da Religião, os contemplativos da sciencia, os cenobitas da arte. Dentre estes ultimos, aqui mesmo no Rio, podemos contar esse famoso compositor, o grande mestre do piano, o glorioso privilegiado da tecla e dos bellos accordes: Ernesto Nazareth. Sim, elle é, como eu firmei acima, um verdadeiro eremita da arte, um perfeito solitario de Apollo.
Foi para o surprehender em uma visita que, em companhia de um parente, cheguei até á casa onde vive o glorioso musicista. Era um destes ultimos domingos de sol fulgurante. A rezidencia do mestre é em Ipanema, precisamente numa rua onde a linha termina... e o mar começa. Sim, o mar! O mar com a sua eterna canção funebre, que é, como firmou illustre phantasista, o ulular sinistro contendo a vasta imprecação, todos os soluços e todos os gemidos desses milhões de seres, que os oceanos sepultam em seu infinito seio. Pois é assim aquelle mar que lava as praias formosas de Ipanema: um mar de soluços, um mar de gemidos, um tremendo mar de imprecações. Para o maestro Nazareth elle não existe, o mar! Vivendo em sua aprasivel morada - um templo de arte - o musico só existe para o seu ideal. Numa abstracção completa do mundo circumdante, o grande compositor tem a sua actividade, o seu sonho, a sua mesma razão de ser, dentro das 7 notas da melodia e em cima do teclado magico do seu piano.
Ah! o seu piano!... quando naquella tarde, elle fez vibrar o seu instrumento predilecto sob as suas mãos eloquentes, sim, eloquentes, não sei porque, numa evocação de arte e de artistas, eu me lembrei do violino de Paganini, do piano de Carlos Gomes, da mesma lyra lendaria de Orpheu!
Nazareth tocou, duas horas seguidas, somente musicas suas, quer dizer, musica brazileira, a sua especialidade, o seu objecto d’arte, a sua obsessão.
Mas... Há tocar e tocar. Há executar musica e executar... Há os que tocam com a propria alma, com o coração todo no instrumento, e por isso empolgam, commovem, arrebatam.
É destes ultimos o maestro Nazareth. A sua vocação para a arte data do berço, disse-nos elle evocando saudades, despertando reminiscencias. N’aquele tempo o Rio não tinha professores de piano.
Um maestro francez, por aqui passando, deu-lhe algumas licções de technica, aperfeiçoando assim as que sua progenitora, que era tambem pianista, lhe ministrara. Quer dizer que Ernesto Nazareth é um autodidata; mas tambem, quer dizer que a arte musical nelle vem por atavismo; é uma questão de raça. Rememorou, e executou mesmo, peças difficeis, que sua veneranda mãe executava, já n’aquelles tempos, com graça e com habilidade profissional.
Há um outro lado interessante, há uma outra feição atrahente na perfeição artistica desse musicista: é a sua identificação com a sua obra, a sua immensa obra correndo mundo dentro de uma aureola de sympathia, dentro d’um côro de applausos.
Antes de executar cada trecho, elle conta a historia, sempre interessante, ligada á composição. Com aquelle todo sorridente, numa eterna bonhomia, numa alegria constante de quem vive bem com Deus e com os homens, o maestro diz, antes das notas da musica, a chronica que aborda. É então um duplo artista: da musica e da palestra, da harmonia da palavra cantada e do rithmo, e do atticismo, e da graça da palavra fallada.
E para quem o ouve, e para quem então d’elle se avisinha, é dobrado o encanto, porque escuta um grande musico, e porque aprecia um formoso causeur, um chronista scintillante.
E ahi está, numa sinthese incolor e muito abaixo do assumpto, o que é e o que vale esse grande patricio, esse notavel artista brasileiro, que, por uma simplicidade extrema, por um temperamento de asceta, e por modestia exagerada, vive obscuro, permanece um solitario da arte, um despretencioso eremita do seu sonoro ideal.
Disse glorioso publicista que Wagner é a propria alma da Allemanha musicada, tanto o immortal musico encarnou, na sua obra, a essencia toda do espirito germanico, tanto o genio amou o solo natal! Fallando-se de Ernesto Nazareth, pode-se avançar, por igual, que elle é a mesma alma do Brasil em harmonisar o coração da Patria em accordes, a indomita, e sentimental, e transbordante indole nacional no que nós temos de mais terno e mavioso, mas tambem no que nós possuimos de mais forte, de mais heroico, de mais estuante e de mais invencivel.
Assis Memória
CARETA. Assis Memória. Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1924;