Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
HOMENAGEM A ERNESTO NAZARETH (1931)
HOMENAGEM A ERNESTO NAZARETH (1931)
Aos 16 de dezembro, no Salão Essenfelder, do “Studio Nicolas”, dando continuidade a série de conferências promovidas pela Associação Brasileira de Música, o escritor e crítico Andrade Muricy, acompanhado pelo pianista Arnaldo Estrella (1908/1980), apresentou palestra intitulada “Música Brasileira Moderna”, na qual abordou, entre outros, um dos seus temas prediletos: Ernesto Nazareth.
(...) Mais considerável, como indicação do caminho a seguir, foi o aparecimento e o sucesso imenso da música personalíssima dum modesto compositor de tangos (o tango não é brasileiro, mas esses o são) e serenatas: Ernesto Nazareth. Toda a produção da música rotulada “popular”, de fabricação citadina, posterior a Nazareth, só serviu para demonstrar, à evidência, a originalidade desse artista-obreiro, simples e maravilhoso, como os escultores medievais anônimos das catedrais góticas. Sua forma, aparentemente, é pouco variada. Há nela, porém, as mais diversas invenções rítmicas e grande felicidade nas acentuações, nas sugestivas e inesperadas inflexões, dentro de um molde que o próprio Nazareth tornou um pouco mecânico, pela insistência, e que, de 40 anos para cá, inumeráveis imitações e plágios banalizaram. Muito mais do que a interessante Chiquinha Gonzaga, sua contemporânea, criadora do esbelto e memorável “Corta-jaca”, Nazareth trouxe para a música brasileira um langor novo, uma vivacidade simpática, expressão da alma carioca de boa vida e boa companhia, recatada, afetiva e alegre, com uma ponta de sentimentalismo fácil; qualidades, essas, quase sempre ausentes da música carnavalesca atual, tornada grosseira e artificial pela industrialização da produção, e que deixou de ser popular para ser muita vez canalha e malsã. Veja-se como, nessa música, que infelizmente tem acesso nas famílias, por falta de polícia, a cada passo alude, doentiamente, a “orgia” e a “malandragem”. Ora, nenhum europeu culto confundiria as cançonetas de cabaret e de revistas com a verdadeira música popular, manando, em inteira pureza, a saúde e naturalidade da alma nacional. Em Nazareth, os achados expressivos, os engenhosos e, entretanto, espontâneos arabescos, tão pessoais, tão saborosos e perfumados, as intenções dum sinfonismo primitivo, porém fortemente dinâmico, que tornam alguns de seus tangos em verdadeiras obras de arte, contrastam com a escrita pianística tão própria e tão eficaz das serenatas (“Apanhei-te, cavaquinho!”, “Ameno Resedá”). Não há de se esquecer o “Brejeiro”, um dos mais belos tangos, e o primeiro e maior sucesso de Nazareth, que abriu uma esteira de volúpia em nossa música de salão, de escrita tão dura e inábil até então, com os Aurélio Cavalcanti; o misterioso “Digo”, verdadeiro poema, simplório e enfático; “Bambino”, dum brasileirismo flagrante. “Turuna”, que ides ouvir, duma audácia incrível, no jeito imitação rudimentar; o elegante “Favorito” (que o jovem e brilhante pianista Arnaldo Estrella também interpretará para nós); os sinfônicos (no sentido de conterem timbres orquestrais implícitos) “Escovado”, “Nenê”, “Carioca” e sobre o “Labirinto”, em que há interessante contraponto violoneiro absolutamente invulgar. (Arnaldo Estrella executa “Favorito” e “Turuna”)
O mérito maior de Nazareth, comparado com os demais compositores de música popular, é o de ter tentado forma nova, intencional, arte portanto, arte primária - e nem tanto! -, porém arte; enquanto que os demais, um Pixinguinha, um Donga, tão interessantes, são expressão direta da alma popular. Nazareth anda sendo desdenhado pelo público volúvel que acompanha as modas; o tempo, no entanto, estou certo, confirmará o julgamento compartilhado com Villa-Lobos, Mário de Andrade, o saudoso Luciano Gallet, de que sua obra ficará como irrecusável monumento duma humilde existência de privilegiado precursor da música brasileira.
Andrade Muricy
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MÚSICA. (José Cândido de) Andrade Muricy. Ano I - nº 1. Rio de Janeiro, segundo semestre de 1932;