Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
OLAVO BILAC
OLAVO BILAC
Entre os colegas do jovem pianista, um nome poderíamos destacar: Olavo Bilac. Nascido no Rio de Janeiro, aos 16 de dezembro de 1865, e falecido na mesma cidade, em 28 de dezembro de 1918, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, importante personalidade da poesia brasileira, narrou momentos de sua infância e juventude em três livros: Crítica e fantasia, Ironia e piedade e Últimas conferências e discursos. Todavia, foi do livro Vida e poesia de Olavo Bilac, do biógrafo Fernando Jorge, a fonte da qual extraímos raríssimas impressões a respeito do padre Belmonte e que mereceram, aqui, sua transcrição, pois, afinal, tais situações vividas por Bilac, também foram, sem dúvida, familiares ao nosso Nazareth.
Este religioso, de nacionalidade portuguesa, era um professor velho, tabaquento e carrança. Andava com passos vagarosos, fazendo ranger, no soalho, as suas botas faiscantes e grossas. Assim que escutavam o ruído áspero do seu calçado, os alunos, de modo rápido, simulavam exagerada aplicação no estudo.
Usava, o padre-mestre, ampla sobrecasaca. E sua cabeça, de linhas vigorosas, emergia de um colarinho alto e claro. Tinha cabelos compridos, levemente ondeados, onde brilhavam fios de prata, que lhe caíam sobre os ombros. Os seus olhos, grandes e severos, reluziam através dos óculos de aros de ouro. Gostava de andar com as mãos atrás das costas. Ora concedia afagos na cabeça de um aluno pequenino, ora dava ligeiro piparote nas orelhas de um preguiçoso. Às vezes se detinha, atendendo, numa voz sonora e autoritária, ao pedido de explicação de um aluno.
O padre conservava sempre, diante de sua pessoa, no período das aulas, um bolorento compêndio de Raffy e uma enorme palmatória de jacarandá. Segundo esse compêndio, Deus havia criado o mundo no ano de 4.138 antes de Cristo. Certo dia, Olavo foi chamado à lição e intimado a dizer, de maneira certa, a data da criação do mundo. O filho do Dr. Brás titubeia, gagueja, atrapalha-se. E por fim, com muito custo, responde:
- 4.136...
Boca, que tal disseste? Houve apenas um engano de dois anos... Uma ninharia... E, no entanto, ó ferocidade pedagógica! Olavo recebe, como castigo, meia dúzia de bolos. A reprimenda causou-lhe choro, amargura, humilhação, desespero. E ele fica perguntando, a si próprio, por que era que Deus, sendo a suprema misericórdia, não se teria lembrado de criar o mundo dois anos mais cedo, a fim de lhe poupar a dor e o vexame daqueles bolos.
O seu orgulho nunca mais iria esquecer nem perdoar a crueldade absurda de semelhante castigo. Desde então, achou que o padre havia praticado um gesto abominável.
Este sacerdote incomplacente, de férula em punho, rígido e inteiriço como aprumado monumento megalítico, era homem de poucas letras e de muita crença. Costumava classificar todos os indivíduos que lhe inspiravam desprezo com um simples e arrasador vocábulo:
- Mação!
Ele não dizia “maçom”, em hipótese alguma, como em geral quase todos dizem. Quando se abespinhava com alguém, só tinha mesmo esta palavra para fulminar os hereges, os vadios, os briguentos, os insubordinados:
- Mação, mação!
No colégio, os alunos tinham um parlamento mirim, onde discutiam, todas as tardes, na hora do recreio, desde questões metafísicas até regras de gramática. A pequena Assembléia contava com um presidente e dois secretários, que eram eleitos de sete em sete dias. E havia, além do mais, um rigoroso regimento interno. Os desmandos de linguagem recebiam, como pena, a expulsão perpétua do infrator. Aqueles fedelhos, mal saídos dos cueiros, tratavam-se por “Excelência”, trocando difíceis mesuras e complicados salamaleques. Inúmeras ocasiões o Padre Belmonte ia assistir à sessão. Cruzava as mãos sobre a respeitável barriga e, de face avermelhada pelo trabalho da digestão, se punha em estado de êxtase, estupidificado diante daqueles geniozinhos eloqüentes e precoces.
Uma tarde - Olavo estava presente - discutiam se Calabar foi ou não um traidor. Um jacobino de doze anos tecia o panegírico do mulato. Mas um adversário, da mesma idade, dava-lhe apartes truculentos. A discussão atingiu tal ponto de acrimônia, que o orador esbravejou:
- Peço vênia a Vossa Excelência para lhe declarar que logo mais tenciono puxar-lhe as orelhas!
O aparteante, no mesmo tom, respondeu:
- E eu declaro a Vossa Excelência, com todo o respeito devido, que, à hora da saída, pretendo quebrar-lhe a cara!
Realmente, no momento da saída, em pleno Largo do Rocio, os dois “parlamentares” se engalfinharam, trocando socos e pontapés... Olavo foi gago na infância, mas, com força de vontade, procurou corrigir esse defeito, lendo, em voz alta, os autores clássicos de sua predileção.
Em tenra idade o mundo já lhe parecia mal e hostil. Não encontrava quem pudesse dar-lhe uma explicação do que fosse a vida. As injustiças que ele sofria, “essas pequenas injustiças que assombram a alma da criança e ficam eternamente doendo na alma do homem”, adquiriram, aos seus olhos, contornos exagerados, forçando-lhe a impressão de serem tremendas e monstruosas. Muitas vezes julgava-se mais infeliz do que os escravos, que ele via acorrentados e submetidos a torturas, e do que os burros de carga, que deparava nas ruas a ofegarem sob as selvagens chicotadas. O seu espírito, embora ainda infantil, sofria inquietações, revoltas, desesperos. A existência se lhe afigurava uma coisa sórdida, um ergástulo repugnante, horrível, em que tudo era severo e duro, e sobre o qual pairava, “ameaçadora, numa eterna inclemência, a sombra da negra palmatória do Cônego Belmonte.”
Ah, o terror que lhe imprimia esse instrumento de castigo!
Uma ocasião, quando já havia sentido despertar o prurido poético, Olavo compôs uns versos e, sem terminá-los, adormeceu. O padre, descobrindo aquela “falta imperdoável”, aquele “delito infamante”, decidiu castigá-lo com a sua pesada palmatória.
Em outra ocasião o sacerdote notou que Olavo quase não freqüentava as missas e que, embora tivesse memória invejável, desconhecia bastante o catecismo. O padre o chamou ao seu gabinete e passou-lhe uma enérgica descompostura. O menino ultra-sensível foi fazer queixa ao pai. Mas o cônego, apesar disso, voltou a repreendê-lo. Desta feita, porém, Olavo retruca:
- Senhor padre, eu creio em Deus, sou religioso, mas a questão é que toda vez que ouço o reverendo falar, eu me lembro que infunde mais medo à criança do que propriamente fé. Nessas condições vou à missa com um olho no Evangelho e outro na palmatória de Vossa Reverendíssima!
Olavo, na escola, vai encontrar um lenitivo para os seus aborrecimentos nos encantadores livros de Júlio Verne.
Todos os alunos, aliás, gostavam de ler o escritor francês. Os seus livros passavam de mão em mão. Até na hora do estudo, no grande salão de paredes despidas, Bilac e seus companheiros se refugiavam no universo do romancista que iria influenciar o alto destino de homens como Charcot, Liautey e o Almirante Byrd.
Enquanto o ventrudo padre Belmonte dormia à sesta, na sua larga poltrona, e o bedel Sizenando, apaixonado pelo charadismo, tentava decifrar enigmas e logogrifos, ele, Olavo Bilac, ia contemplando paisagens desconhecidas, correndo perigos inauditos, curtindo frio no pólo, fome em ilhas desertas, sede devoradora nas infinitas extensões da África... Graças ao criador de Miguel Strogoff, aquela criança sonhadora podia dormir “à sombra das tamareiras da Síria e à sombra dos pagodes da Índia”. E perder-se em florestas virgens, navegar no fundo do oceano, no centro de “vegetações fantásticas e animais imensos”, ouvir o estrondo da queda do Niágara, enjoar-se com as oscilações de um balão “no meio do céu formigante de astros”.
O efeito mágico só terminava quando Olavo lia a última linha de qualquer um desses romances. Então ele se via de novo na sala funérea, melancólica, ao ouvir o ofego do padre e o andar do bedel maníaco por charadas.
Confessaria, depois, que era como um pano de boca a descer “sobre o palco da ilusão, matando a fantasia e ressuscitando o sofrimento...”
Fernando Jorge
JORGE, Fernando. Vida e poesia de Olavo Bilac. Editora McGraw Hill do Brasil, Ltda. São Paulo, 1977;