Ernesto Nazareth - Vida e Obra - por Luiz Antonio de Almeida
CONFERÊNCIA DE ANDRADE MURICY (1926)
CONFERÊNCIA DE ANDRADE MURICY (1926)
No dia seguinte, 15 de julho, quinta-feira, mais dois importantes fatos passaram a fazer parte da história de Ernesto Nazareth. O primeiro aconteceu no Rio de Janeiro: a palestra proferida pelo jovem escritor e futuro crítico musical José Cândido de Andrade Muricy, sendo, essa (daí a sua importância), a primeira vez em que se procurou levar a público uma análise mais cuidadosa da obra do ilustre artista.
PELO MUNDO DA MÚSICA
ANTIQUALHAS NAZARETHIANAS
Ernesto Nazareth estava em São Paulo, onde se demorou de abril de 1926 a março de 1927. Adelino Magalhães, o extraordinário escritor e ficcionista de “Visões, cenas e perfis”, promovia uma série de conferências no salão do Centro Paulista (do Rio de Janeiro); mais tarde continuadas na Biblioteca Nacional, e que tiveram grande repercussão. Convidado a participar da série, optei por um tema musical. (...) Naquele 15 de julho, um ano antes regressara eu de longa estada na Europa, e acabava de publicar o meu romance “A festa inquieta”. (...) O convite amigo de Adelino Magalhães reconduziu-me a Nazareth, e, atrevido, lancei o tema: “Ernesto Nazareth, compositor clássico”. Não sei o que na época se pensou desse aparente despropósito. Dei a conferência à “Gazeta de Notícias”, onde foi julgado excessivo o teor do tema: o qualitativo “clássico”, considerado paradoxal, foi suprimido do título; da conferência, muito extensa para o jornal, foi amputada, por inteiro, a parte crítica e a análise da obra. Ainda assim, esse modesto documento abre a série de conferências e de estudos referentes a Nazareth. (...) Do que sobrou da minha modesta palestra reproduzirei a seguir, 36 anos depois de parcialmente publicada, alguns trechos que parecem ser de atualidade. Estes:
“Eis porque pianistas com medalha de ouro e prêmio de viagem não são capazes de executar decentemente um tango brasileiro; eis porque tantos finos artistas estão com senso rítmico viciado pelos rítmos regulares, e impossibilitados de reproduzirem com segurança e precisão um rítmo brasileiro característico, o rítmo sincopado.
Por isso, é, ainda neste momento, angustiosa a situação, entre outras, da obra de Ernesto Nazareth, no quadro social de nossa vida musical.
Ernesto Nazareth é um precursor admirável. Advinha mais do que qualquer outro compositor nosso, as possibilidades da música brasileira. Tem a intuição nítida duma técnica brasileira, dum colorido nosso, quente, envolvente, dum movimento alerta e numeroso.
Criou técnica sua, personalíssima. Limitou a sua inspiração a breves e desnudados desenvolvimentos, apesar dum senso de ornamentação que genèricamente o aparenta a um Chopin e a um Albéniz.
Nazareth é uma espécie de Granados rústico, mas quão mais variado em seus acentos, quão mais profundo em certos dos seus achados harmônicos!
Executem-se corretamente, e com verve, “Digo” ou “Favorito”, de Nazareth, e depois ouçam-se as “Saudades do Brasil”, de Darius Milhaud, um dos líderes da música francesa e moderna. Que diferença, da sinceridade aguda, pungente, direta, de Nazareth, para os arranjos artificiosos e magros de Milhaud. E este, entretanto, é um grande técnico e aquele, o nosso, um músico de subúrbios, que é proibido de tocar.
O desprêso, melhor, a ignorância, está na esfera intermédia, na música do Instituto e na professôra que do Instituto saiu. Essa é que, no trabalho ingente de integração da alma nacional, nada advinha ainda, nem dos alicerces humildes em que ela se fundamenta.
(...) Hoje... Hoje? Hoje só os “pianeiros”, os tocadores que se deixam contratar para bailaricos suburbanos ( - como isso tudo passou... - ) sabem tocar Nazareth, vencendo a técnica, por vezes árdua e complicada que tal execução exige. Nossos pianistas de salão ( - não mais existem... - ) e de concertos sabem reproduzir rítmos russos e escandinavos, e são incapazes de reproduzir os nossos.
Se amanhã vier a ser criada a nossa grande música nacional, os intérpretes estarão desarmados, terão de refazer a técnica especial que Donga e Pixinguinha possuem quase com genialidade.”
Andrade Muricy
JORNAL DO COMMERCIO. Pelo mundo da música; antiqualhas nazarethianas. José Cândido de Andrade Muricy. Rio de Janeiro, 13 de março de 1963;